tag:blogger.com,1999:blog-337662412024-03-14T03:45:02.150-04:00TRANSMIGRAÇÕESManolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.comBlogger22125tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-40849351466449389732014-12-22T11:16:00.000-05:002014-12-22T11:16:49.826-05:00MAJAO - Pintora de Sonhos
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://1.bp.blogspot.com/-pWXGxrZDBfA/VJhCq7xoj_I/AAAAAAAAAPQ/zJ5AsvFc7Po/s1600/IMG_0459.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://1.bp.blogspot.com/-pWXGxrZDBfA/VJhCq7xoj_I/AAAAAAAAAPQ/zJ5AsvFc7Po/s320/IMG_0459.JPG" /></a></div>Parque Jarry, entardece. Sombras começam a derramar-se sobre as águas do lago, diluem os tapetes ondulantes da relva, trepam, até às pontas dos ébanos, pincelam, numa abundância de tons voluptuosos, o céu de porcelana. Os patos começam a singrar, em fila, sem pressas, para os seus refúgios nas profundezas dos altos juncos. Uma serenidade imensa dissipa os últimos sons diurnos que ainda teimam em afrontar o silêncio reinante.<br>
A Majao (Maria João) retira os óculos de sol e fica, por instantes, de olhos sonhadores poisados no espelho de água, talvez, quem sabe?, a sorver a inspiração para uma tela futura que condense a magia do momento.<br>
“Nasci em Faro, sou uma algarvia de gema. Os meus pais eram agricultores, Estudei lá, onde fiz o sétimo ano do ensino liceal. Aos 17 anos, vim com os meus pais para Montreal.“ as palavras fluem cantantes, repassadas de reminiscências.<br>
Fica assim esclarecido o seu fascínio pela água e pelos grandes espaços. Quem nasceu à beira da Ria Formosa guardará vida fora na alma a impressão de tanta formosura que os caprichos da natureza envolveram em deslumbrante sudário de luz.<br>
“É de cristal a noite e de maresia o ar<br>
Na água a brisa baila branda branca e nua”<br>
Assim cantou certo poeta rendido aos seus encantos.<br>
“A nossa vinda para o Canadá deveu-se em grande parte à crise que a agricultura atravessava, os meus pais estavam saturados da situação. Para mim foi uma aventura, desde a chegada que sempre me senti bem em Montreal. Cheguei em Outubro mas tive a sensação de que sempre tinha vivido cá. A neve nunca me afligiu. Antes de ingressar no cégep onde fiz um curso de técnicas administrativas, fiz outros trabalhos como tradutora, acompanhava as pessoas ao Ministério da Imigração, foi uma época muito interessante. Havia, na altura, na comunidade portuguesa um grupo de jovens muito activos. Participei em muitas das suas actividades, nomeadamente no Centro Português de Referência e Promoção Social onde, no meu tempo de estudante, colaborei em vários projectos. Dei também, durantes vários anos, aulas de português na Escola Português do Atlântico.<br>
Em 1975, casei. Quando vim para o Canadá, o meu namorado partira para Angola e quando acabou a comissão de serviço militar e regressou a Portugal, casámos por procuração. Veio ter comigo logo depois, em Setembro de 1975.”<br>
Era o dealbar de uma vida nova, à sua frente rasgavam-se novos mundos repletos de promessas. Nasceram os filhos, um rapaz e duas raparigas. Profissionalmente abriram-se novas portas, os laços que a prendiam, desde os primeiros tempos, ao novo país reforçavam-se gradualmente, numa trama apertada.<br>
“Fui trabalhar para o hospital St-Justine como agente de projectos. Guardo gratas recordações desse tempo”. - O brilho dos olhos não desmente as palavras calorosas. - “Sentia-me completamente realizada"<br>
Entretanto, quando o canto da sereia da integração soava cada dia mais sedutor, por vontade do marido, sempre saudoso do torrão natal, a família regressou, temporariamente, a Portugal.<br>
“Apesar de alguns contratempos, essa experiência também teve aspectos positivos, por exemplo, deu aos meus filhos um contacto mais profundo com a língua e a cultura portuguesas.”<br>
De volta a Montreal, o comboio da vida seguiu o seu curso normal, a readaptação deu-se sem grandes sobressaltos. Os filhos retomaram os estudos, concluíram os seus cursos universitários, são, hoje, um orgulho para a mãe.<br>
Quando tudo parecia encarreirar-se para usufruírem uma vida aprazível e confortável, a tragédia abateu-se sobre aquelas vidas.
“Em 2005, a minha vida deu uma volta muito grande. O meu marido faleceu inesperadamente e, passados poucos anos, fiquei sem os meus pais. Entretanto, os meus filhos iniciaram as suas carreiras profissionais e também seguiram o rumo deles.”<br>
Em tais circunstâncias, quando sentem a ameaça das garras aguçadas da solidão, muitas pessoas refugiam-se na sua torre de marfim, traçam ao seu redor intransponíveis muralhas que as protejam das ameaças do mundo exterior, resguardam-se num ilusório refúgio onde se sintam em segurança. Não foi o caso da Majao. Mulher corajosa, aguerrida, enfrentou a situação de frente, partiu em busca de novos caminhos, de novos desafios, guiada por uma sensibilidade que emergiu como um farol no mar encrespado.<br>
“A partir de certo momento senti que precisava de me reencontrar, de transmitir os meus sentimentos através da arte, da pintura. Cedo compreendi que poderia libertar-me da nostalgia que me invadira, através dos pincéis.”<br>
Desde o dia em que teve essa premonição, o mundo ganhou novas cores, a alegria de viver rasgou inesperados rumos. Abundantes mananciais de criatividade despertaram no mais profundo do seu ser. Das suas mãos sedentas de beleza começaram a brotar rios de sonhos que galgaram margens, transbordaram, inundaram e fertilizaram o chão fecundo das suas telas.<br>
“Frequentei um curso de pintura mas ainda hoje continuo a ter aulas, porque é preciso estar sempre actualizado com as novas técnicas que vão surgindo, mas em pouco tempo consegui dominar a arte de pintar, sobretudo da pintura a óleo.”<br>
As exposições surgiram, foram mais um incentivo para continuar a alimentar a sua paixão.<br>
“A minha primeira exposição foi no Ministère du Revenu Federal, foi a primeira porta que se abriu.”<br>
Muitas outras se sucederam, sempre com grande sucesso e acolhimento favorável por parte do público: Centro Comunitário de Anjou, Chez le Portugais, Caixa Portuguesa Desjardins, Centre Sequoia, Festa do LusoPresse, Hôtel Holliday Inn, Casa dos Açores, entre outras. Desde há 4 anos, participa com os seus trabalhos na “Plumes et Pinceaux” uma reputada agenda que, anualmente, reúne vários pintores e poetas do Québec.<br>
“Um dos meus sonhos é fazer uma agenda com trabalhos de pintores e escritores da comunidade portuguesa, acredito que é uma ideia interessante e possível desde que se reúnam os apoios necessários.”<br>
Admiradora de pintores como Pissaro e Monet, após breves incursões exploratórias pelo impressionismo e pela pintura abstracta, a Majao cedo encontrou um estilo próprio onde a natureza tem um lugar predominante. Quando observamos as suas telas, a água está omnipresente. A água e o céu. Amplos espaços azuis por onde vogam os seus sonhos, numa busca incessante da felicidade e da harmonia. Silhuetas de mulheres esbeltas debruçam-se às janelas da vida, perscrutam mundos oníricos que se adivinham par além da linha do horizonte. As cores são intensas, calorosas, contratantes, há murmúrios escaldantes, vozes que sussurram promessas, gritos que se soltam e esvoaçam ao encontro da luz como borboletas sedentas de liberdade.<br>
Mas também encontramos nas suas telas, num banho de luz e sombras, preciosos detalhes que nos fazem mergulhar no fecundo imaginário da pintora repartido entre dois mundos que se conciliam admiravelmente: chaminés mouriscas; ruas calcetadas debruadas por casas brancas e ensolaradas; barcos abandonados nas areias das praias ansiosos por se lançarem nos braços do mar; a apoteose das amendoeiras em flor; veredas sinuosas que rasgam bosques flamejantes; lagos tranquilos debruados por árvores que se erguem, aprumadas, para o infinito e se reflectem nas águas profundas; cumes nevados a tocar o céu; a policromia esplendorosa das flores que inundam as paisagens em metamorfoses inebriantes.<br>
Hoje, a Majao é uma mulher serena, com metas e objectivos bem definidos, compenetrada do seu valor, que pretende deixar a sua marca neste mundo onde a maioria das gentes levam uma vida amorfa, amarradas a destinos sem horizontes.<br>
“Procuro constantemente valorizar-me, crescer, aprofundar os meus conhecimentos e compreender o mundo que me rodeia.”<br>
Mulher também pragmática, tem ideias muito claras e precisas sobre o seu lugar na sociedade de acolhimento, não faz rodeios quando afirma:<br>
“Nós temos que nos adaptar ao país que adoptámos e não podemos manter-nos agarrados aos costumes dos países de origem. Devemos estar reconhecidos porque aqui tivemos a oportunidade de refazer as nossas vidas, mas nunca esquecendo que nós também viemos enriquecer esta sociedade ”.<br>
Fala ainda, com carinho desmedido a embargar-lhe a voz, dos filhos, dos netos, que são a luz dos seus olhos, a energia primordial que alimenta a sua vida nas horas de dúvida e de desalento.<br>
A noite caíra, finalmente. Os lampiões que bordejam o lago já espargem a sua luz, acendem arabescos cintilantes nas águas tranquilas. Uma aragem fresca faz fremir a folhagem das árvores, brinca, traquinas, com os cabelos da minha entrevistada.<br>
Calámo-nos. Deixámos que a noite, com os seus braço ternurentos nos envolvesse, a sugerir uma tela que, em diáfanas tonalidades, nos falasse, num sussurro, dos eternos segredos da vida.<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://1.bp.blogspot.com/-qx966e1amh8/VJhC2RwQH6I/AAAAAAAAAPY/4z20jQCbIdg/s1600/barco.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://1.bp.blogspot.com/-qx966e1amh8/VJhC2RwQH6I/AAAAAAAAAPY/4z20jQCbIdg/s400/barco.jpg" /></a></div>
Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-81111902169574215972014-12-14T22:10:00.000-05:002014-12-22T21:06:57.609-05:00História de Natal<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://4.bp.blogspot.com/-MXfrBVbl4Ck/VI5MWR6egXI/AAAAAAAAAOc/VdyemFEG_K8/s1600/boneco.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://4.bp.blogspot.com/-MXfrBVbl4Ck/VI5MWR6egXI/AAAAAAAAAOc/VdyemFEG_K8/s320/boneco.jpg" /></a></div>
A solidão é das criaturas mais ferozes e impiedosas que surgiram à face da Terra. Desde tempos imemoriais, mais precisamente desde que os homens são homens e se começaram a desencontrar, que o seu terreno de caça tem a vastidão do mundo.<br>
A longa experiência ensinou-lhe que há épocas do ano mais propícias, quando as suas presas estão mais vulneráveis, indefesas, à mercê dos seus apetites insaciáveis, incapazes de resistir ao seu abraço mortífero. Assim acontece na quadra natalícia quando as emoções andam mais assanhadas. Assim aconteceu com aquele homem solitário , de olhar apagado, vergado pela tristeza desde que a companheira de tantos anos partira para outros mundos e o deixara desamparado, incapaz de reatar as pontas da meada da vida truncada.<br>
Naquela véspera do dia de Natal nevara dia e noite, sem repouso. O homem, naufragado no poço sem fundo das suas recordações, encostou a fronte à vidraça e sentiu o frio repassá-lo até ao coração.<br>
Na varanda, a neve, imaculada, já com um palmo bem medido de espessura, tinha a beleza dos postais de boas-festas. Uma beleza que o esmagava e acabrunhava ainda mais.<br>
A solidão, que rondava por ali, quando lobrigou o homem, soltou uma gargalhada satânica e, experiente em tais andanças, adivinhou a fragilidade da presa. Com uma pirueta, esvoaçou ao seu redor, atirou-lhe logo as garras ao pescoço, cravou-lhe a dentuça na alma.<br>
Mas, surpreendentemente, desta vez, o homem não cedeu à primeira investida, um estremecimento de resistência revoltou-lhe o corpo. Naquela noite de todos os prodígios, no mais profundo do seu ser reacendeu-se a última brasa que restava da fogueira que lhe alumiara os passos nos seus descuidados tempos de criança. Para espanto da solidão, o rastilho do pensamento que lhe aflorou a fronte ateou-lhe um sorriso nos lábios que alastrou, traquinas, infantil, pelo rosto sulcado pelos reveses da vida.<br>
“Isto não é de homem ajuizado e da minha idade,” ainda hesitou, relutante em ceder à tentação.<br>
Mas foi de pouca dura a resistência. Logo afastados os pruridos, dono duma energia há tanto tempo arredia, envergou o casaco e as botas da neve, enfiou um gorro cabeça abaixo e saltou para a varanda com a ligeireza e o entusiasmo dos tempos da infância.<br> Atirou-se à obra, jovial. Em três tempo, o boneco de neve estava de pé, a alva cabeçorra à espera do gorro que o homem tirou da própria cabeça, para o ornamentar com desvelos paternais. As mãos, ágeis, inspiradas por forças desconhecidas, modelaram um nariz proeminente e o arredondado da testa, desenharam uma boca, tornearam os contornos dum manto.<br>
Ao redor, a solidão rangia os dentes, restolhava sobre a neve, com silvos de serpente enfurecica. Mas o homem já nem se apercebia da sua presença. As mãos, a escorrerem poesia, ávidas, continuavam a moldar a sua criação, a aperfeiçoar-lhe os contornos, a burilar os últimos detalhes.<br>
“Estás mesmo engraçado”, disse, dando dois passos atrás , para admirar o resultado do seu labor. O sorriso continuava-lhe pendurado dos lábios, como uma flor.<br>
A solidão continuava a arrastar-se pela neve, enroscou-se num recanto afastado da varanda, perplexa, vencida.<br>
Mas a tarefa do homem ainda não terminara. Os seus passos determinados conduziram-no ao interior do apartamento, à cozinha, donde regressou com algumas rodelas de cenoura que pregou na capa do boneco, numa imitação de botões flamejantes. Duas azeitonas pretas deram vida aos buracos dos olhos, foram o retoque final.<br>
“Agora, sim, estás perfeito. Tenho que te dar um nome. Monico, estás de acordo? “, - Pareceu-lhe que a sua proposta agradara ao boneco. – Ficas, então, o Monico.<br>
Beliscado pelo frio, regressou ao aconchego do apartamento. Através da vidraça que a neve começava a rendilhar com delicadas filigranas de cristal, ficou a admirar a sua obra. O boneco, com o gorro à banda, todo pimpão na sua farpela, parecia sorrir-lhe.<br>
Um esquilo observara toda a cena do conforto do seu refúgio na abrigada dum ébano de braços vergados pelo peso da neve. A princípio, condoera-se com o rosto devastado do homem esborrachado contra a vidraça. Assistira, indignado, ao ataque traiçoeiro da solidão. Dera um guincho de satisfação com a reacção inesperada do homem. Até dera sapatadas de alegria na neve quando o boneco começara a crescer e a ganhar forma. Mas o seu maior contentamento aconteceu quando vira a gulodice das rodelas de cenoura a servir de botões. Feliz por não ter de ir esgatanhar a neve à procura da sua ração de bolotas em qualquer esconderijo improvável, saiu do seu refúgio, de orelhas espetadas e ventas frementes. Mal o homem virou costas e entrou em casa, amaranhou varanda acima, atraído pelo inesperado festim que se lhe oferecia, farto, em tempos de tanta míngua.<br>
Uma golfada de ira alastrou pelo rosto do homem quando viu o esquilo comer o primeiro botão, o seu primeiro impulso foi abrir a porta de rompão e expulsar o intruso a pontapés. Mas foi detido por estranha voz impregnada de paz que crescia no silêncio da noite sagrada.<br>
Após deglutir dois botões, saciado, o esquilo, sem pressa de regressar ao seu refúgio, trepou, agilmente, pela capa do boneco acima e , ternurento, brincalhão, encostou-lhe o focinho ao rosto enregelado. Foi quanto bastou para que o milagre acontecesse.Num repente, numa alquimia redentora ,o boneco de neve ganhou vida, humanizou-se. Estremeceu, piscou os olhos de azeitona, a boca rasgou-se num sorriso bonacheirão a ressumar emoções mal contidas. No silêncio daquela noite repleta duma luminosidade quase diurna, , um rio da ternura ousara correr para os braços do mar profundo da vida, o calor do amor vencera, mais uma vez, para remissão da humanidade, a ferocidade da solidão.<br>
A princípio atónito, mal podendo acreditar no que os seus olhos viam, o homem acabou por derrubar os altos muros que o aprisionavam. Liberto, num impulso irresistível, em harmonia com o mundo, escancarou a bocarra da porta e convidou o boneco de neve a entrar.<br>
“Vem, vamos consoar juntos”, as palavras esvoaçaram como revoada de notas musicais soltas das cordas dum violino a vibrar por ali. “Pomos a cozer duas postas de bacalhau com grelos. Com um bom copo de vinho a acompanhar, vamo-nos regalar.”<br>
Do lado de fora, o esquilo alçou a cauda, radiante, os olhos tremeluziam-lhe como estrelas.<b>
MANUEL CARVALHO
Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-56692105758562719082013-12-25T11:18:00.000-05:002013-12-25T11:32:16.901-05:00O presépio mais lindo do mundo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://2.bp.blogspot.com/-xS3UV382-1s/UrsFFkhn8rI/AAAAAAAAANU/PQ7DohkJ238/s1600/presepio.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://2.bp.blogspot.com/-xS3UV382-1s/UrsFFkhn8rI/AAAAAAAAANU/PQ7DohkJ238/s320/presepio.jpg" /></a></div>Tarde cinzenta de Dezembro. Um céu de chumbo abatera-se sobre a cidade, esmagava os telhados do casario, num abraço enregelado. A neve, que não cessara de cair nos últimos dias, perdera o seu alvo encanto e cobria as ruas com um manto conspurcado e friorento.<br>
- Este ano não faremos o presépio. – As palavras, inesperadamente soltas da boca da mulher, ficaram a pairar no apartamento como uma revoada de farrapos negros soprados por forte vendaval. <br>
O marido olhou-a, demoradamente. Os olhos azuis dela, estavam apagados, cor de cinza, já não iluminavam, como outrora, o rosto agora entumescido pelo efeito secundário dos medicamentos.<br>
- Porquê? – Era uma pergunta supérflua, desnecessária, a única palavra, trémula, cheia de asperezas, que conseguira vencer o nó cerrado da garganta.<br>
- Não vale a pena. – O fio de voz era quebradiço como cristal, ficou a retinir por ali, serpenteou pelo soalho, refugiou-se, esmorecido, pelos cantos mais obscuros.<br>
Ele voltou a cabeça para que a mulher não se apercebesse da névoa que lhe embaciou o olhar. De manso, foi-se sentar no sofá, a seu lado, e envolveu-a no fogo de um abraço imenso e desesperado. Agora as lágrimas sulcavam-lhe as faces, salgavam-lhe os lábios, desciam até ao queixo que tremia.<br>
- Não chores, mais cedo ou mais tarde todos acabamos por deixar este mundo – consolou-o ela.<br>
Na cabeça do homem ressoavam, como marteladas, as palavras cansadas e compassivas do médico: “A sua mulher já entrou na fase terminal. Irão precisar de muita coragem.”<br>
Procurava, em vão, respostas aceitáveis para as perguntas impiedosas que o perseguiam, sem tréguas, como matilha esfomeada. Como seria apaziguante se um véu de compreensão lhe cobrisse a alma em carne viva e se uma onda de resignação lhe viesse lavar do peito dilacerado aquele sufoco. Mas ainda não soara a hora da aceitação e da reconciliação com a vida, as peças do drama ainda continuavam soltas, desordenadas, sem encontrarem o seu devido lugar na harmonia cósmica.<br>
A tarde findava. Sombras mais espessas avançavam pela janela rasgada a toda a largura da parede, apossavam-se da sala. Os dois vultos entrelaçados, ceifados sobre a vastidão árida do sofá, confundiam-se com o negrume da noite que chegava sem pressas e diluia, pouco a pouco, os contornos dos objectos familiares. Ficou, por ali, interminável, dilacerante, o grito agudo do silêncio.<br>
Inesperadamente, num repente de inconformismo, o homem estremeceu, sacudiu a letargia, ergueu-se ligeiro e sorridente, as palavras romperam num estralejar de centelhas resplandecentes.<br>
- Vamos fazer o presépio, e é para já.<br>
Com uma palmada brusca no interruptor, acendeu a luz que, numa rápida vassourada, expulsou as pesadas sombras que os esmagavam e mais lhe reforçou a determinação que brotara vá-se lá saber em que fonte regeneradora do seu ser. Quando regressou da despensa, sobraçando a caixa com as figuras do presépio, os olhos fulgiam-lhe.<br>
- Vai ficar bonito – disse, como quem esparge um braçado de flores. – Confia no meu talento.<br>
Rapidamente, no recanto do costume, junto à televisão, ergueu a mesita que cobriu com o pano vermelho e aveludado de sempre. Pouco a pouco, meticulosamente, com ternura de prestidigitador, os dedos foram arrancando do ventre fecundo da caixa as figuras de porcelana que emergiam do sono profundo mais belas e brilhantes do que nunca: primeiro o Menino Jesus, despojado de tudo, deitado sobre as palhas douradas; depois o S. José e a Nossa Senhora, em adoração, debruçados sobra a manjedoura, a sonharem um mundo novo; vieram de seguida os reis magos, mortos de cansaço, com as suas oferendas de ouro, incenso e mirra; o anjo, triunfal, de asas abertas, soprava na trompete anunciadora do nascimento da esperança redentora; os pastores, extasiados, guiavam-se pelos sinais anunciadores do prodígio; os animais abeiravam-se, dóceis, conduzidos por um instinto milenar. Os dedos ágeis, cada vez mais inspirados, plantaram, aqui e ali, algumas árvores, ergueram, acolá, um aglomerado de casas fumegantes, espargiram flocos de algodão, a arremedar a pureza da neve, sobre a singeleza do estábulo, o presépio ia crescendo, crepitava de vida, restabelecia a harmonia do universo. Estava, mais uma vez, recriada ali, naquele recanto sofrido da cidade, a cena bíblica que atravessara os séculos e continuava, eterna, a alimentar a esperança dos homens e a dar calor e sentido às existências amarfanhadas pelas cutiladas da vida.<br>
A mulher, atenta, tudo observava, as mãos descarnadas pousadas no regaço, as faces maceradas menos crispadas, os lábios exangues a desabrocharem num ténue sorriso há tanto tempo arredio.<br>
- Está pronto – disse ele, radiante. – Vês como não custou nada a fazer?<br>
- Ainda falta uma coisa muito importante. - Um brilho divertido bailava no olhar dela. – Esqueceste-te da estrela.<br>
- É verdade, que esquecimento o meu – riu-se o marido. – Rebuscou no fundo da caixa, descobriu a peça dourada por entre os enfeites que por lá restavam.<br>
` - Aqui está! - Com desvelos imensos, ergueu-a no topo do estábulo, triunfal, anunciadora da Boa Nova. – Espero que ainda funcione.
Quando, após breve hesitação, a estrela começou a piscar alegremente e a irradiar o seu facho de luz que multiplicava constelações pelas paredes, os olhos da mulher tornaram a iluminar, como nos tempos aprazíveis, o rosto agora suavizado pela bem-aventurança daquele instante que detivera, fugazmente, a marcha inexorável do tempo.<br>
- Gostas?<br>
Os olhos azuis, que ele nunca mais esqueceria pela vida fora, continuavam repletos duma ternura sem mácula e a resposta veio num sopro, com a leveza das palavras transcendentais.<br>
- É o presépio mais lindo do mundo.<br>
Na calmaria que se seguiu, vozes reminiscentes pairavam, imponderáveis, por ali, sussurravam histórias encantatórias de afectos desmedidos, acendiam fogueiras purificadoras que, crepitantes, lhes entrelaçavam e fundiam as vidas e os destinos pelos caminhos da eternidade.
Do estábulo, os braços abertos para eles num abraço imenso, o Menino Jesus sorria. E até a estrela parecia piscar com mais alegria.<br>
(Publicado no jornal"A Voz de Portugal" e no jornal PÚBLICO-edição do dia de Natal-2013)
Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-13902906582531233672012-12-31T18:34:00.000-05:002013-01-01T14:55:03.664-05:00HOMENS DESTES NUNCA MORREM <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://4.bp.blogspot.com/-7e77Uh3jR8I/UOIg4UHOgPI/AAAAAAAAALA/nZQLO7TviXQ/s1600/image002.gif" imageanchor="1" style="clear:left; float:left;margin-right:1em; margin-bottom:1em"><img border="0" height="151" width="123" src="http://4.bp.blogspot.com/-7e77Uh3jR8I/UOIg4UHOgPI/AAAAAAAAALA/nZQLO7TviXQ/s320/image002.gif" /></a></div>
Disseram-me que o José das Neves Rodrigues faleceu.<br>
Não acredito. Homens destes nunca morrem. Andem lá por onde andarem, ficarão para sempre vivos na memória e no imaginário colectivo dos povos que tiveram a benção de os acolher no seu regaço.<br>
Porque o Neves Rodrigues pertencia àquela estirpe de homens visionários que têm o condão de espargir braçados de sonhos ao seu redor, como quem semeia amanhãs radiosos. Sonhos do tamanho do mundo, raiados com as cores mais surpreendentes que a vida pode procriar.<br>
Tipógrafo de profissão, anarquista convicto, chegou ao Canadá em 1960 e nas décadas de sessenta e setenta, em tudo o que de relevante acontecesse na Comunidade, inevitavelmente, logo vinha à baila o nome dele. Na fundação da Caixa Portuguesa, da Casa dos Portugueses de Montreal, do Movimento Democrático, do Centro de Referência; na criação e publicação de boletins, jornais e revistas como o Luso-Canadiano, a Tribuna Portuguesa, o Movimento, o Portinhola e a Caravela; nas gloriosas jornadas de luta antifascista; em projectos concretizados ou que, mirabolantes, nunca foram avante, como a criação de livrarias, de arquivos documentais, de bibliotecas ou de centros culturais. Sempre de mãos estendidas e abertas, mente fervilhante, alma desmedida e uma sede insaciável de fraternidade e de justiça social.<br>
Foi, decerto, a pensar em sonhadores destes que o poeta António Gedeão burilou essa filigrana incomparável que é a Pedra Filosofal.<br>
(...)<br>
Eles não sabem nem sonham<br>
Que o sonho comanda a vida,<br>
Que quando um homem sonha<br>
O mundo pula e avança<br>
Como bola colorida<br>
Entre as mãos de uma criança<br>
(...)<br>
Infatigável cavaleiro andante da utopia, quantas vezes incompreendido e ostracizado, quando não escarnecido, nunca deixou de semear, prodigamente, sonhos e quimeras pelos campos floridos do porvir, por vezes em batalhas inglórias contra moinhos de vento, quase sempre com sacrifício dos seus interesses pessoais e familiares. <br>
Conheci-o, casualmente, numa viagem de avião para Lisboa. Foi uma fabulosa noite em branco, num fascinante cavaquear sem tréguas que deveria ter deixado os nervos em franja aos passageiros mais próximos, ansiosos por um pouco de repouso antes de poisarem no torrão natal.<br>
Já sobrevoávamos Lisboa que, esplendorosa, desabrochava na manhã luminosa, quando, a meio da cavalgada da conversa, quando eu menos esperava, sussurou-me ao ouvido:<br>
“Vou-lhe contar um segredo, mas não me denuncie. Levo aqui comigo as cinzas da minha mulher, para sepultar em Portugal.” - Apesar da estonteante revelação, sorria, quase divertido - “Foi a última vontade dela. Não sei se é legal mas também nunca liguei muito a leis.”<br>
Nunca mais pude esquecer a expressão faiscante daqueles olhos claros como a água. Só muito mais tarde, em circunstâncias de que agora não me recordo, é que eu soube quem ele era. E só então é que compreendi que, possivelmente, aquela teria sido uma das últimas acções conspirativas do indomável anarquista. <br>
Como uma obsessão, que nunca deixou de me perseguir, sempre tive o anseio de contar a história daquela noite extraordinária que o acaso nos proporcionou passarmos juntos. A oportunidade parecia, finalmente, querer concretizar-se com a realização de uma entrevista para o livro “Rostos, Olhares e Memória” mas, infelizmente, fui dissuadido do meu intento por informação de que já se encontrava muito debilitado e incapaz de suportar tamanho esforço. <br>
Mas que viagem de assombros aquela! Passados tantos anos, ainda me parece que o estou a ouvir, as palavras a soltarem-se, frementes e triunfais, com o fervor dos crentes:<br>
“Acredito que um dia virá em os homens serão todos iguais e que a Terra, sem amos nem escravos, será, finalmente, um paraíso onde a felicidade reinará para sempre.”<br>
Que mais adequadas e mais belas palavras poderia encontrar para dar esperançosas boas vindas ao ano de 2013? E ainda há quem diga que o Neves Rodrigues morreu! Pura ilusão, as UTOPIAS são imortais.
Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-82641471594316681432012-10-25T10:37:00.000-04:002012-10-26T09:59:40.600-04:00Os emigrantes desconhecidos
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://4.bp.blogspot.com/-9keKZawQsTQ/UIlOOkIOgxI/AAAAAAAAAKE/5978bEzln8A/s1600/rom1.gif" imageanchor="1" style="margin-left:1em; margin-right:1em"><img border="0" height="320" width="208" src="http://4.bp.blogspot.com/-9keKZawQsTQ/UIlOOkIOgxI/AAAAAAAAAKE/5978bEzln8A/s320/rom1.gif" /></a></div>
Encontro-o, vezes sem conta, ali no parque, sentado num dos bancos que bordejam o lago povoado de patos selvagens.<br>
Nunca lhe soube o nome, nunca quis saber em que localidade portuguesa nasceu. Para mim, é o emigrante desconhecido e isso me basta.<br>
Esta definição tão sumária assenta como uma luva à sua figura rústica, robusta, talhada na telúrica pedra das serranias portuguesas.<br>
Pela rugas profundas, como sulcos de arado, do rosto, pelas mãos nodosas e possantes, pelo olhar de aço, é fácil adivinhar um homem tenaz, coriáceo, habituado aos trabalhos pesados e ao rigor de climas inóspitos.<br>
«Andei muitos anos na construção, trabalhei no estádio olímpico, estive nas barragens da baía James, aquilo é que era frio de rachar.»<br>
As palavras não deixam transparecer qualquer queixume ou ressentimento. Antes pelo contrário, reflectem o orgulho do homem que nunca baixou a cabeça perante as contrariedades da vida e que tudo soube aceitar estoicamente, de dentes cerrados e coração largo.<br>
Geralmente, é ao entardecer que os nossos passos se cruzam. Eu gosto de olhar o voo caprichoso da meia dúzia de andorinhas, lá no alto, incansáveis na perseguição às nuvens de mosquitos. Ele adora ouvir o trinar dos melros refugiados na folhagem dos carvalhos.<br>
«Na minha terra corre um regato, no meio de muito arvoredo, onde é um regalo ouvir cantar os rouxinóis. Mas olhe que aqui os melros também não cantam mal, não me farto de os ouvir.»<br>
Entre nós, os silêncios são longos e eloquentes. Mas também há dias em que os pensamentos anseiam voar mais soltos, precisam de se transformar em palavras numa alquimia demorada, sem pressas.<br>
«Hoje passei o dia a tratar do quintal. Já tenho aquilo para ali cheio de tomateiros e alfaces. Este ano também semeei umas leiras de feijão de trepar que um vizinho me deu, vamos lá ver o que aquilo dá. Amanhã, talvez plante uns pés de couve. Os québecois chamam-lhe couve portuguesa mas na minha terra sempre lhe ouvi chamar couve galega.» Após tão longo e inabitual discurso, fica a observar a aspereza das mãos castigadas. «Agora que já não trabalho, ajuda-me a passar o tempo.»<br>
Disse-me que morava perto do parque mas já me esqueci do nome da rua. Deve ser num daqueles duplexes que para ali há, com umas hortas nas traseiras que são um mimo. Só mesmo obra dos italianos ou portugueses amorosos da vida, que por lá andam a semear mão-cheias de poesia.<br>
«Na minha terra trabalhei nos campos desde criança, ainda não esqueci o que aprendi. Qualquer dia, passe por lá para eu lhe mostrar a minha obra. Aproveitamos para beber um copo do meu vinho, este ano saiu-me de estalo. Usei pela primeira vez uvas chilenas e não me dei mal.»<br>
Quando está mais predisposto para a conversa, fala-me da casa que mandou construir na aldeia natal, do bom pedaço de terra que tem ao redor, onde plantou um magnífico pomar.<br>
«Plantei lá muitas árvores mas as de que mais gosto são as cerejeiras. Quando lá chego no verão, estão sempre carregadinhas de cerejas encarnadas que é um encanto. O meu irmão é que me trata daquilo, caso contrário estaria tudo ao abandono, a criar urzes para os lobos. Eu e a minha mulher fartamo-nos de trabalhar nas férias, nem sei para quê. Os meus filhos nunca lá vão, não querem saber daquilo para nada. Mesmo que não lho confesse, às vezes acho que têm razão, há sítios mais descansados onde ir passar as férias. Já têm outra forma de ver o mundo, não lhes posso levar a mal.»<br>
É desnecessário perguntar-lhe se está arrependido de ter emigrado. Basta ler-lhe a determinação do olhar para antecipar a óbvia resposta.<br>
«Quando eu vim para cá, Portugal era uma miséria, morríamos de fome. Aqui fui bem recebido, a vida foi por vezes difícil, mas tudo se passou, o trabalho nunca me meteu medo. Hoje tenho quase oitenta anos, a saúde não me falta, criei os filhos que, graças a Deus, têm bons empregos, os netos gostam de mim. Quando as saudades apertam, meto-me num avião e vou até à terra. O que mais posso pedir?»<br>
Há dias em que lhe dá prazer rememorar os primeiros tempos da chegada, quando tudo era desconhecido, nas raias do irreal.<br>
«Não tinha cá ninguém e não percebia patavina das línguas do país. Tenho muito a agradecer a alguns portugueses que já viviam no Bairro Português, se não me tivessem amparado, não sei o que teria sido de mim. Quer saber qual foi o meu primeiro emprego? Nem lhe passa pela cabeça.»<br>
Solta uma gargalhada, inesperada em homem tão circunspecto, que até sobressaltou os patos no lago.< br>
«Fui apanhador de minhocas, veja lá! Íamos ao anoitecer, em grupo, para os campos de golfe, com uma lanterna na testa e uma lata atada à perna, e era um apanhar nelas que só visto. Quando conto isto em Portugal, nem acreditam, pensam que é cantiga minha.» Divertido, passa a manápula pelo rosto, acama os cabelos grisalhos mas ainda bastos. «Depois já foi melhor, os meus amigos arranjaram-me trabalho numa padaria de italianos, a amassar pão, tudo o que vinha à rede era peixe.»< br>
Ontem, apareceu acompanhado pela mulher. Franzina, azougada, tagarela, um pouco mais nova do que ele, veio, rapidamente, espalhar umas pinceladas mais vivas nas nossas conversas tantas vezes insípidas.<br>
«Este malandro, mal acaba de jantar, sai logo porta fora. Desconfio que anda para aí a arrastar a asa a alguma rapariga.» Dá uma palmada amigável no joelho do marido que sorri, meio encavacado. De pescoço esticado, varre o parque com os olhos inquietos para logo se voltar para mim, pronta para desatar o saco num chorrilho de palavras que se atropelam umas às outras, apressadas por voar em bando.<br>
«O meu marido já lhe deve ter contado a vida dele mas olhe que a minha também não foi fácil, principalmente no princípio. Trabalhava numa fábrica de casacos, a ganhar à peça. Aquilo era todo o santo dia agarrada à máquina, quantos mais forros pregasse mais ganhava, era trabalho de escrava. Costuma-se diz que Deus escreve direito por linhas tortas, é bem verdade. Quando a fábrica fechou fiquei toda aflita mas, passado pouco tempo, encontrei trabalho, nas limpezas em casa de uma senhora judia, foi como se me tivesse saído a sorte grande. Ela gostou tanto de mim que, passados poucos meses, já era eu que tratava de tudo, fiquei a ser a governanta da casa e já tinha outra portuguesa para me ajudar nos trabalhos mais pesados.»<br>
Calou-se, com as mãos cruzadas sobre o peito, para ganhar fôlego. Oportunidade que o marido aproveitou para se desculpar, com um olhar penalisado:<br>
«O senhor deu-lhe trela, agora tem de a ouvir. Esta mulher quando começa a falar não há quem a cale.»<br>
«Lá vai por ti, passas dias seguidos quase sem me dar uma palavra, às vezes parece que lhe meteram uma rolha na boca. O senhor quer ouvir mais esta...»<br>
Na calmaria da tarde, ela continuou o seu tagarelar sem fim, eu fiquei a seguir o voo das andorinhas, o marido de ouvido à escuta do canto dos melros que até pareciam que se esmeravam só para lhe dar prazer.<br>
Sei que aquelas criaturas, ali sentadas ao meu lado, naquele pacato anonimato, nunca estarão debaixo das luzes na ribalta, nunca verão o seu nome escarrapachado nos jornais, morrerão como viveram, fundidos na natureza, com a naturalidade das árvores que cumpriram o seu ciclo, entre muitas, na floresta.<br>
Contudo, quando por vezes me imagino talentoso escultor capaz de talhar uma estátua de homenagem aos emigrantes desconhecidos, é aquele rosto lavrado a formão e aquelas mãos rudes do homem e, frente a frente com ele, o rosto afilado, fremente, vivo, atravessado por coragem inabalável, da mulher, companheira das boas e das más horas, que gostaria de ter engenho para perpetuar no calor da pedra ou da madeira.<br>
(Texto final do livro “Rostos, Olhares e Memória”, publicado em Montreal-2012)
Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-4346383501221375022010-08-29T18:08:00.002-04:002010-08-29T18:14:08.465-04:00<a href="http://1.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/THrbi5MtimI/AAAAAAAAAIU/YIIEpYbeb1I/s1600/IMG_1646.JPG"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 320px; height: 240px;" src="http://1.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/THrbi5MtimI/AAAAAAAAAIU/YIIEpYbeb1I/s320/IMG_1646.JPG" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5510958486557395554" /></a><br /> <strong>Mudam-se os tempos</strong><br /><br /> - Pai, eu fico. Gosto muito de vocês mas fico. Não estou para me ir enterrar naquela pasmaceira. Aquilo, embora tenha nascido lá, já não me diz nada.<br /> Estavam a almoçar. O Manuel Casaca, a mulher, a filha. Num domingo de Maio.<br /> O Manuel Casaca fitou os olhos garços e límpidos da filha. Uma limpidez entretecida de determinação e resoluções feitas. Baixou os olhos para o prato, as batatas engroladas na garganta.<br /> - Tu é que sabes, filha, tu é que sabes da tua vida. Eu e a tua mãe só queremos o teu bem. - A violência das palavras gastara-se em meses de discussões virulentas. -Tu e que sabes, filha.<br />` - Eu e o Maurice vamos casar. Tentem compreender, por favor. Por favor. -<br />Minutos de silêncio. O sol a entrar pela janela.<br /> - Vou dar uma volta.<br /> - Onde vais, Manel? — alarmou-se a mulher, chorosa.<br /> - Descansa que não me vou enforcar.<br /> Na rua, sentia-se desnorteado, desprogra¬mado. Os quinze anos de Canadá repartira-os entre o trabalho e a St-Dominique. Entremeados de viagens a Portugal de cinco em cinco anos, para matar saudades, para preparar o amanhã.<br /> Foi dar ao jardim. Um jardim a cobrir-se vertiginosamente de sol e verde. Sentou-se num banco. Um esquilo desceu duma árvore e aproximou-se em avanços e arrecuos inquietos. As perguntas-acusações sem resposta da aldeia em peso não cessavam de esmurrar o homem:<br /> “E a tua filha? O quê? Deixaste-a naquelas terras? Casada com um estrangeiro? E tu deixaste? Que raio de homem és tu? Não te sais ao teu pai, não, com esse ela vinha nem que fosse morta. Andaste tantos anos por lá para quê? Todas as terras que compraste vão ser para os lobos. Mais valia teres ficado por lá, desgraçado.”<br /> - Podem-me dizer o que devo fazer? Hei-de morrer nestas terras, enterrado num buraco de gelo?<br /> O esquilo marinhou árvore acima, amedrontado corn os gritos do homem. Lá no alto, ficou imóbil, a espiar.<br /> O Luis Rita, que por essa altura passava rente ao jardim, abanou a cabeça. No cruzamento da Laval com a Pine, tropeçou num grupo de conterrâneos agachados ao redor duma telefonia.<br /> - Sabem que está ali no jardim, a falar sozinho? O Manuel Transmontano. Sempre disse que aquele gajo acabava zaruca.<br /> - Cala-te, cabrão. Deixa-nos ouvir o relato.<br /> *<br /> Recém-chegado a Montreal, foi com este texto que me estreei como colaborador do jornal A Voz de Portugal. Já lá vão trinta anos. Três décadas que assistiram à maior revolução tecnológica da história da humanidade.<br />Esta manhã, ao encontrar casualmente o retalho de jornal numa pasta amarelecida pelos anos e ao relê-lo, com um sorriso algo saudosista nos lábios, apercebi-me como o mundo mudara. Como a comunidade portuguesa mudara.<br /> Agora, o sonho dos encanecidos pioneiros da emigração portuguesa para estas terras já não é levar a família de volta ao torrão natal. Perdidas as ilusões, deixaram de ser exigentes e já se alegram, e até mesmo soltam uma lágrima enternecida rugas abaixo, se os netos ainda continuam a falar sem grandes atropelos a língua portuguesa e a gostar de bifanas, caldo verde e folclore. As rasteiras vida ensinou-os a contentarem-se com pouco e a aceitar o porvir com resignação.<br /> O fervor pelo futebol talvez ainda esteja mais aceso do que antigamente. Com a abismal diferença de que agora, na maré cheia da revolução das comunicações, as telefonias de ondas curtas já são autênticas peças de museu e os jogos podem ser seguidos religiosamente nos enormes e luminosos ecrãs de televisão que transmitem as imagens e o som com uma fidelidade sem mácula. Até mesmo nas manifestações de júbilo por ocasião dos ansiados golos ou perante uma jogada mais virtuosa, no salutar confronto clubista da algazarra dos cafés, o portuguesíssimo e abrangente cabrão é cada vez mais amiúde ultrapassado por um “pure laine” e sonoro <em>tabarnac</em>, a revelar uma evidente mestiçagem de línguas e culturas que nada nem ninguém conseguirá deter.<br /> Rendo-me à evidência. Da minha envelhecida história pouco resta de pé. Só mesmo os esquilos é que ainda continuam a marinhar árvores acima donde ficam, pasmados, a observar a incompreensível correria dos homens pelos caminhos dum futuro cada vez mais improvável mas sempre fascinante.Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-400566400172674612009-12-28T20:44:00.021-05:002010-01-12T17:02:54.035-05:00Noite de consoada<a href="http://4.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/SzlflernOsI/AAAAAAAAAGw/EhqHU5_uZzI/s1600-h/menino.JPG"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 240px; height: 320px;" src="http://4.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/SzlflernOsI/AAAAAAAAAGw/EhqHU5_uZzI/s320/menino.JPG" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5420468724012890818" /></a><br />A St-Laurent estava quase deserta. Não fossem os enfezados enfeites luminosos, a pingar das árvores despidas e famélicas, que pintalgavam os restos de neve arremeçados contra os bordos dos passeios, nem se acreditaria que era a noite de consoada.<br />O homem, ainda novo, quarenta anos mal feitos, caminhava com passada mole, sem destino, num remar cansado contra a noite infindável. Vergavam-no o peso das recordações que lhe tinham cravado a dentuça no pescoço e teimavam, raivosas, em não lhe dar tréguas.<br />As mais antigas, nebulosas mas ainda assim felizes, eram fragmentos cada vez mais esboroados das consoadas da infância em Miranda: a crepitante fogueira acesa pelo entusiasmo da rapaziada, carradas e carradas de lenha queimadas num imenso braseiro que alimentavam noite fora as labaredas esfomeadas de chegar ao céu; a missa do galo, na Sé enregelada, com a ladainha do padre a ressoar pelas imensas naves , tão interminável que até impacientava o seráfico Menino Jesus da Cartolinha como sempre regaladamente instalado na sua guarida; o silente regresso a casa, a paz pousada como pombas brancas nos beirais dos telhados, os passos a ressoar nas pedras lisas e escorregadias da calçada medieval.<br />Nos primeiros anos em Montreal, lar de imigrantes aturdidos em busca de sentido para a nova vida, eram noites tristes, cheias de saudades mal saradas, de lágrimas furtivas da mãe sufocadas pelos cantos da casa, disfarçadas por sorrisos apagados. <br />Já homem feito, numa fuga constante às fragilidades coladas para sempre à pele, as noites de consoadas eram passadas, nas mais diversas e inesperadas circunstâncias, ao sabor das suas relações amorosas frívolas, inebriantes, sem cadeias. Quando as coisas corriam para o torto, havia sempre os braços abertos da casa dos pais, as eternas bolas mirandesas, o calor duma alegria mais resignada e o vozeirão sadio do pai repleto de recordações. Era a elas que se agarravam todos com a fúria de náufragos num mar estranho a que nunca pertenceram por inteiro.<br />Estava, agora mesmo, a ouvir a voz do pai: <em>que rapaz este, recordas-te mulher?, não havia presente de Natal que lhe servisse. Só tinha olhos para os canivetes mirandeses, até lhe saltavam os olhos da cara quando via um nas mãos de alguém. Ainda mal se sustinha nas pernas, parecia um cachorrito a saltar atrás de quem lhe mostrasse o dianho dum canivete.</em> - As palavras rudes ensopavam-se de lágrimas ternurentas. - <em>Nunca vi uma coisa assim, o garoto parecia enbruxado.Como é que se podia dar um brinquedo desses a uma criança! Só se fôssemos doidos.</em>. <br />A mãe, sombra diáfana, sorria, passava-lhe a mão protectora pelos cabelos e, sem que eles se apercebessem, ia-se despedindo aos poucos do filho, do marido, soltas, desde há muito, as amarras ao cais da vida.<br />O falecimento dos pais quebrara a derradeira ligação umbilical aos prados floridos da infância. O fascínio dos canivetes fora para sempre, assim o acreditara, vencido pelo do mistério das mulheres. Mas com o correr da vida, principalmente nesta época do ano, face a face com as recordações assanhadas, cada vez se apercebia com mais crueza da fraqueza das raízes que o agarravam ao chão que pisava, da sua solidão. Uma solidão imensa, dolorosa, que lhe perfurava as entranhas e abria sulcos profundos de tristeza que nada, nem mesmo as mais envolventes aventuras amorosas, podia sarar.<br /><a href="http://3.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/Szp_v0FrQ-I/AAAAAAAAAG4/XsSNGLMZRyE/s1600-h/15.JPG"><img style="float:left; margin:0 10px 10px 0;cursor:pointer; cursor:hand;width: 200px; height: 150px;" src="http://3.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/Szp_v0FrQ-I/AAAAAAAAAG4/XsSNGLMZRyE/s200/15.JPG" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5420785560906843106" /></a><br />Quando chegou ao Parc du Portugal, as pernas trémulas recusaram continuar a caminhada sem norte, forçaram-no a sentar-se num banco mesmo à beira do fontanário donde o leão de pedra da bica, seca nesta época do ano, o observava meio intrigado. Mais à frente, o padrão dos descobrimentos, esguio e esbranquiçado, na sua frieza pétrea, era sentinela vigilante, indiferente à sua presença. No telhado do coreto, os pombos encolhiam-se uns contra os outros para se protegerem do frio cortante e também não lhe prestavam atenção. Só o manto de neve que cobria a calçada do parque é que rastejava ao seu encontro para o envolver no seu abraço frígido.<br /> Enregelado, estava disposto a erguer-se, prosseguir o calvário da caminhada, quando, assombrado, pressentiu um vulto sentado a seu lado. Sem pinga de sangue, olhos dilatados de espanto, reconheceu logo a figura inconfundível do Menino Jesus da Cartolinha: rosado, a cartola na cabeça, todo aperaltado na sua farpela de cetim bordado a oiro dos dias de festa, um sorriso fraterno desenhado nos lábios infantis.<br />A um gesto do Menino, o parque animou-se rapidamente. Um grupo de anjos desceu do céu, instalou-se no coreto com um farto instrumental de harpas, cítaras e flautas que encheram a noite com a magia da sua música celestial. Logo de seguida, dois outros anjos, surgidos do frio, desdobraram alva toalha de linho sobre a neve e serviram em silêncio, uma frugal ceia de consoada composta de pão de centeio, salpicão e presunto. <br />O Menino, sorridente, retirou da algibeira da casaca um belo canivete de cabo de madeira esculpido que ofereceu ao homem.<br />- Reconheces? É o canivete dos sonhos da tua infância. Podemos começar a cear.<br />O homem lentamente, num ritual litúrgico, a saborear cada instante, cortou o pão em longas e suculentas fatias, o salpicão em rodelas finas e sumarentas, o presunto em lascas rosadas, com firmeza e uma sabedoria que só podia nascer do fundo da memória ancestral.<br /> Faltava o vinho mas logo da boca do leão do fontanário começou a jorrar um bica-aberta fresco e capitoso que recolhiam na concha das mãos e sorviam deliciados.<br />Finda a ceia, os anjos recolheram os restos das vitualhas e os instrumentos musicais e evolaram-se, sem ruído, nas profundezas da noite. O Menino Jesus da Cartolinha, um tudo nada mais corado pelos efeitos do vinho, demorou um último olhar nos olhos do homem e preparou-se para partir também.<br /> - O canivete - balbuciou o homem.<br /> A suave mão do Menino aflorou-lhe o ombro.<br /> - É teu. É o teu presente de Natal.<br />Quando, instantes depois, com passo firme e decidido, o homem regressou ao seu apartamento, com o canivete no fundo da algibeira, era a criança mais feliz do mundo.Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-87676612911662642082009-12-19T15:39:00.005-05:002010-01-12T17:07:21.411-05:00Os milagres ainda existem<a href="http://4.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/Sy06ywlVnkI/AAAAAAAAAGA/QhyztZnFuus/s1600-h/estrelapolar.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 233px; height: 320px;" src="http://4.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/Sy06ywlVnkI/AAAAAAAAAGA/QhyztZnFuus/s320/estrelapolar.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5417050570505952834" /></a><br /> Sábado de Agosto em Portugal. Corria uma bela noite de verão. Quente, sem ponta de vento, convidativa a olhar o mundo com os olhos do coração.<br /> Como acontecia frequentemente, eu e a minha mulher decidimos meter-nos no carro e ir até Fátima. Ela porque adora rezar o terço na Capelinha das Aparições e assistir à procissão das velas. Eu porque gosto de respirar a paz daquele mundo de recolhimento e meditação.<br /> Pelo caminho, no pequeno trajecto de cerca de quinze minutos, movido por forças insondáveis, a meio da conversa, evoquei as noites de verão da minha infância distante. Era então um deslumbramento olhar o céu recamado de estrelas, identificar as constelações , a Ursa Maior, a Ursa Menor, até encontrar a Estrela Polar, a estrela da minha predilecção. Lá estava ela sempre presente, luminosa, fiel companheira de navegantes, exploradores e poetas, a indicar o caminho da salvação, dos sonhos e até mesmo da liberdade.<br /> A sua beleza e simbolismo foram cantados, desde sempre, por poetas e trovadores, em rimas de encanto rutilante:<br /><br /> “Com licença! Com licença!<br /> Que a barca se fez ao mar.<br /> Não há poder que me vença.<br /> Mesmo morto hei-de passar.<br /> Com licença! Com licença!<br /> Com rumo à estrela polar.”<br /> <br /> (António Gedeão)<br /><br /><br /> Eu vi a Estrela Polar<br /> Chorando em cima do mar<br /> Eu vi a Estrela Polar<br /> Nas costas de Portugal<br /><br /> (Viniciu de Moraes)<br /><br /> Era em tudo isso que eu pensava, com um travo amargo de melancolia na garganta enquanto olhava o céu coberto pelo espesso manto da poluição tecido pela ambição desmedida dos homens atacados pela epidemia dum consumismo desbragado.<br />Chegados a Fátima, a minha mulher dirigiu-se para a capelinha enquanto eu<br />fui tomar um café numa das acolhedoras esplanadas repletas de turistas que desfrutavam regaladamenteo conforto da noite. Retemperado, dirigia-me para o encontro marcado junto ao local das promessas, onde, como sempre, ardia a fé de milhares de velas, quando um inesperado apagão deixou o Santuário mergulhado na mais profunda escuridão.<br /> Surpreendido, ergui os olhos e, num deslumbramento, extasiei-me com um inesperado céu coalhado de estrelas, onde não faltava a bela Estrela Polar da minha infância que me sorria fraternalmente e me sussurrava ao ouvido que o milagre acontecera mais uma vez na solidão daqueles ermos.<br /> É imbuido deste espírito repleto de esperança num amanhã melhor que me chegam as notícias do fracasso da Cimeira de Copenhaga. Os dirigentes políticos mundiais, amordaçados por interesses inconciliáveis e inconfessados, falharam mais uma vez nos seus propósitos de estabelecer regras e uma conduta mais exemplar que salve o mundo da destruição.<br /> Como sempre nas encruzilhas do futuro da humanidade, caberá agora aos simples cidadãos, no seu labutar quotidiano, a missão de empunhar o facho da esperança num mundo diferente. Um mundo mais fraterno, guiado pelo amor, avesso a um materialismo insaciável destruidor da alma humana, capaz de reatar os laços com as nascentes mais puras e primordiais da vida.<br /> Impossível? Talves não, os milagres ainda existem. Principalmente nesta época do ano em que as pessoas estão mais propensas para o pão do espírito.Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-41239346431883188742009-10-31T23:17:00.003-04:002009-10-31T23:42:03.285-04:00Sementeiras e colheitas<a href="http://1.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/Suz_MooM-SI/AAAAAAAAAF4/WYzET5MMTiI/s1600-h/chouri%C3%A7os.gif"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 262px; height: 233px;" src="http://1.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/Suz_MooM-SI/AAAAAAAAAF4/WYzET5MMTiI/s320/chouri%C3%A7os.gif" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5398970645839935778" /></a><br />Quando se semeia, nem sempre a colheita é a esperada. Há sementes mais ousadas que se transviam, que caiem em chãos inesperados e que por lá ficam, como que adormecidas, até ao dia em que, movidas pelo acaso ou por forças desconhecidas, sacodem o torpor e irrompem triunfais em florescências deslumbrantes.<br />E a sementeira que se julgava perdida para sempre pode-se transformar na mais radiosa promessa de futuro. Assim acontece com as pessoas, na sua luta diária e tantas vezes heróica pela vida. Assim acontece com as comunidades que, como que obedecendo a um instinto misterioso, seguem percursos tantas vezes atribulados mas que parecem obedecer a um traçado bem definido cuja razão escapa ao nosso limitado entendimento.<br />Para ilustrar e clarificar um pouco este arrazoado, aqui transcrevo dois textos que repesquei na internet e que intencionalmente deixo na língua original para que não se perca pitada da sua comovente sinceridade. Um fala de raízes, o outro de gastronomia. No fundo, ambos falam de nós, das nossas andanças por estas terras, das nossas sementeiras.<br /><br /><strong>Um samedi soir au Portugal…à Montréal</strong><br /><br />Samedi soir passé après mon magasinage de la journée au centre-ville de Montréal, j'ai arpenté le quartier portugais de Montréal à la recherche de... rien. Juste me promener et profiter de la belle soirée sans trop penser. Je me retrouve donc au coin des rues St-Urbain et Rachel. Il y a là l'église Santa-Cruz de la communauté portugaise de Montréal. Dans le stationnement de celle-ci, une quantité impressionnante de gens danse, chante et s'amuse.<br />Je suis curieux et je m'avance près des danseurs. Un monsieur me dit bonsoir et je lui demande c'est quoi la fête. Il me répond que c'est le 30 mai et que c'est la fête de l'Esprit-Saint. Il tente de me dire son nom, mais je n'entends pas très bien. Ce n'est pas qu'il parlait un portugais régional, mais étonnamment un très bon français. Je tente aussi de lui dire mon nom, mais même scénario. La musique est forte et le chanteur s'en donne vraiment à coeur joie en portugais. Je décide donc de lui montrer mon permis de conduire. Faut bien que ça serve à quelques choses. Il lit mon nom et s'exclame : "Ah!!! Francisco Rodrigues!!!" Je souris et je lui montre que c'est plutôt Rodrigue. Je lui raconte ce que je sais de mes racines avec le portugais Yves Rodrigues arrivé à Québec en ~1748. Avec un grand sourire en hochant positivement de la tête il me dit : "Tu connais ton histoire, tu fais partie de la famille. Reste au moins jusqu'à 22 h, ils vont nous servir de la bonne bouffe tout à l'heure." Je n'avais pas terminé de le remercier de son invitation que son ami m'invitait à aller danser avec sa fille. Franchement, je regrette encore de ne pas avoir continué mes cours de danse à une autre époque...<br />Tout ça pour dire que ce peuple n'oublie pas ses racines et encore moins ses traditions. C'est comme le tirage au sort organisé autour d'un bazar. Les "rifas", petits carreaux de papiers roulés qui servent de billets pour ce tirage au sort. Ils sont fabriqués durant l'hiver par les femmes portugaises. Je n'ai pas plus d'info sur le sujet pour l'instant. J'en ai acheté un paquet de 40.<br />Bref, des gens très chaleureux que je remercie encore de leur accueil et du très bon moment passé en leur compagnie.<br /><br />CHORIZO PORTUGAIS<br /><br />Quand j’étais petit, mes parents avaient parmi leurs amis, un couple originaire du Portugal. Ils n’habitaient pas très loin de chez nous, à Chicoutimi. Je me souviens vaguement d’y être allé souper à l’occasion mais je me rappelle surtout de la « saucisse portugaise »; une espèce de saucisson sec relevé qu’ils mangeaient tout simplement ou en le mélangeant pendant la cuisson du poulet. J’étais trop jeune pour savoir que c’était du chorizo. Je ne me souviens même pas d’y avoir goûté à l’époque. J’ai quand même le souvenir de l’odeur, du couteau de monsieur Dalmeida qui tranchait le saucisson froid, de la texture de la viande, des morceaux de gras, de ses gros doigts de débosseleur qui tendaient la tranche à mon père. Je me souviens aussi de la façon dont ces gens s’exprimaient, leur langage coloré, leurs voix tonitruantes qui prenaient de la place comme s’ils étaient constamment en colère. 30 ans plus tard, à Montréal en vacances, alors que j’étais à la recherche d’un resto, je m’étais retrouvé sur St-Laurent. Un restaurant portugais. Un restaurant comme je les aime, sans prétention, avec un bar ou des habitués discutent. Un resto portugais avec des Portugais (c’est con, mais je n’aime pas aller dans un resto marocain ou il n’y a pas de Marocain ou des restos indiens ou n’y a pas d’Indiens). J’y avais mangé un poisson fabuleux, cuit à point… et une entrée de chorizo qui m’avait ramené des effluves de souvenirs. J’avais alors demandé au proprio où l’on pouvait trouver un tel chorizo, il m’avait expliqué que sur Duluth en plein coeur du quartier portugais de Montréal était LA place. Le lendemain, un dimanche, j’avais décidé de m’y rendre et d’en acheter, avant de comprendre que les Portugais ne travaillent pas le dimanche et de m’être rivé le nez sur une épicerie fermée. Quelques mois après, lors d’une autre visite à Montréal, j’y étais retourné et je fus séduit par la convivialité, la même retrouvée qu’au resto. J’avais discuté avec le boucher qui s’interrogeait sur le fait que j’achetais autant de chorizo d’un seul coup. Quand je lui avais dit que je venais du Saguenay, il trouvait ça drôle : il n’achetait que de l’agneau du Saguenay-Lac-Saint-Jean… J’y suis retourné à plusieurs reprises, à toutes mes visites à Montréal finalement, en achetant un peu plus que la dernière fois (pour les amis!) et en y retrouvant le même service. J’adore ce genre de boucherie, avec ses bouchers qui emballent à l’ancienne, au papier, qui écrivent au crayon à mine le prix sur le paquet, ces épiceries qui nous rappellent notre enfance, qui nous ramènent au temps ou le « sans emballage » du commerce existait. À l’ancienne. (…) À mon humble mesure j’ai fait connaître ce chorizo chez moi au Saguenay, je suis devenu un diffuseur (…)<br /><br />Razão tinha o nosso grande Camões:<br /><br />“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, <br />muda-se o ser, muda-se a confiança; <br />todo o mundo é composto de mudança, <br />tomando sempre novas qualidades.”<br /><br />Sosseguem pois aqueles que se inquietam pelo futuro da Comunidade Portuguesa. Continuemos tranquilamente a semear. Pois a colheita será farta.Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-26846572323425990222009-05-31T11:59:00.006-04:002009-06-07T04:57:32.760-04:00Rei-Poeta Al-Mu'tamid<a href="http://4.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/SiKqdY_uNbI/AAAAAAAAAFw/KdsCPlCdWTg/s1600-h/Silves-pra%C3%A7aAl-Mu%27tamid.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 320px; height: 240px;" src="http://4.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/SiKqdY_uNbI/AAAAAAAAAFw/KdsCPlCdWTg/s320/Silves-pra%C3%A7aAl-Mu%27tamid.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5342019529917478322" /></a><br />O Otman telefou-me para me desejar boa-viagem a Portugal. Pressenti-lhe na voz uma ponta de emoção. Saudades do seu querido Marrocos, compreendi.<br />Porque o Otman é marroquino. Muçulmano praticante. Frequenta assiduamente a mesquita. Estuda o Corão. Não come carne de porco. É abstémio, não toca numa gota de álcool.<br />Pai de dois filhos, com um terceiro a caminho, uma das suas grandes apreensões é ver as crianças, em contacto com outros mundos e outras culturas, perder a sua identidade ancestral. Apreensão compreensível, até comovedora pelo que revela de apego a valores inestimáveis que se perdem no fundo do tempo e que caracterizam a idiossincrasia dos povos. <br />Michel Giacometti, italiano apaixonado pelos portugueses, um dos grandes investigadores da música tradicional portuguesa, afirmou: "A consciência da nossa identidade como povo obriga ao conhecimento da nossa cultura rústica - não apenas das suas manifestações vivas, mas também das suas formas periclitantes ou que vivem tão somente na memória dos mais velhos." E ele sabia melhor do que ninguém do que falava.<br />Em todo o caso, o Otman é um muçulmano tolerante, como a maioria dos muçulmanos. Quando nos encontramos, fala-me com veneração dos profeta Jesus e Abraão. Está-me sempre a relembrar as nossas raízes culturais comuns de povos mediterrânicos. Eu acredito. Principalmente quando nos reunimos para saborear uma boa sardinhada que eu acompanho a golpes de vinho tinto e ele, mais austero, com umas goladas de água. <br />Certo dia, para o pôr à prova, convidei-o a visitar a magnífica Catedral de Saint-Patrick, situada no “Centre-Ville”. Para meu espanto, mal franqueou o portal da entrada, o Otman descalçou os sapatos. “Nunca entraria calçado num lugar sagrado” justificou-se perante o meu olhar perplexo. Depois, com a maior das tranquilidade, andámos por ali, uma boa hora, a admirar aquelas maravilhas da arte sacra.<br />Sempre supus que o primeiro rei-poeta do território lusitano fora o D. Dinis. Isto até ao dia em que o Otman me falou do rei-poeta Al-Mu'tamid. Nascido em Beja no ano 1040, passou a maior parte da sua juventude em Silves antes de ser coroado rei de Sevilha. Vitimado por guerra fraticida, acabou por morrer em 1095, desterrado em Aghmat, perto de Marraquexe.<br />Hoje é reconhecido com um dos maiores poetas árabes da Península Ibérica.<br />Um dos seus poemas mais celebrados foi dedicado à bela Silves, uma terra que nunca conseguiu esquecer no seu duro desterro. Mas Silves também não o esqueceu, perpetuando a sua memória na magnífica Praça de Al-Mu'tamid, como descobri recentemente.<br /><br />EVOCAÇÃO DE SILVES<br /><br />Saúda, por mim, Abu Bakr,<br />Os queridos lugares de Silves<br />E diz-me se deles a saudade<br />É tão grande quanto a minha.<br />Saúda o palácio dos Balcões<br />Da parte de quem nunca os esqueceu.<br />Morada de leões e de gazelas<br />Salas e sombras onde eu<br />Doce refúgio encontrava<br />Entre ancas opulentas<br />E tão estreitas cinturas!<br />Mulheres níveas e morenas<br />Atravessavam-me a alma<br />Como brancas espadas<br />E lanças escuras.<br />Ai quantas noites fiquei,<br />Lá no remanso do rio,<br />Nos jogos do amor<br />Com a da pulseira curva<br />Igual aos meandros da água<br />Enquanto o tempo passava...<br />E me servia de vinho:<br />O vinho do seu olhar<br />Às vezes o do seu copo<br />E outras vezes o da boca.<br />Tangia cordas de alaúde<br />E eis que eu estremecia<br />Como se estivesse ouvindo<br />Tendões de colos cortados.<br />Mas retirava o seu manto<br />Grácil detalhe mostrando:<br />Era ramo de salgueiro<br />Que abria o seu botão<br />Para ostentar a flor.<br /><br />“É ou não verdade que temos um rico passado cultural comum?” pergunta-me o Otman, orgulhoso, enquanto tira a pele a mais uma sardinha. <br />Perante os factos, não há argumentos. Nestas ocasiões propícias à conciliação, apetece-me tranquilizar o seu receio quanto ao futuro dos filhos. Apetece-me dizer-lhe que para além das diferenças que distinguem, e tantas vezes dividem, os povos, muito mais importante é o legado universal que nos une e no qual nos reconhecemos todos filhos da mãe-Terra. E ele, estou convicto, amolecido pelo manjar que o mar comum generosamente nos oferta, compreenderá o sentido mais profundo das minhas palavras.Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-2470395362136260852008-11-09T16:57:00.003-05:002008-11-09T17:13:13.974-05:00Elogio da mestiçagem<a href="http://4.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/SRdfUIJW6zI/AAAAAAAAAD4/bVtsiDORaLA/s1600-h/obama.gif"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5266783088621841202" style="DISPLAY: block; MARGIN: 0px auto 10px; WIDTH: 301px; CURSOR: hand; HEIGHT: 318px; TEXT-ALIGN: center" alt="" src="http://4.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/SRdfUIJW6zI/AAAAAAAAAD4/bVtsiDORaLA/s320/obama.gif" border="0" /></a><br /><div>Todos os povos são mestiços. Todas as culturas são mestiças. Todas as línguas são mestiças. Todos nós somos mestiços.<br />Basta percorrer, de olhos abertos, as páginas da História para nos apercebermos da realidade, cada vez mais evidente, deste imenso e fascinante laboratório de mestiçagem que sempre foi a Terra.<br />É talvez por isso que a eleição de Borack Obama como presidente dos EUA está a despertar tanta emoção. Subitamente, Obama transformou-se aos olhos de toda a humanidade no símbolo do homem novo num mundo novo.<br />Será ele, encarnação de tanta mestiçagem, o passo por acontecer do poeta e escritor luso-moçambicano Mia Couto?<br /><br />POEMA MESTIÇO<br /><br />Escrevo Mediterrâneo</div><div>na serena voz do Índico<br /></div><div>Sangro norte</div><div>em coração do sul</div><br /><div></div><br /><div>Na praia do oriente </div><div>sou areia náufraga </div><div>de nenhum mundo</div><br /><div></div><br /><div>Hei-de começar </div><div>mais tarde</div><br /><div></div><div>Por ora </div><div>sou a pegada </div><div>do passo por acontecer<br /><br />Tal como o sonhou o poeta moçambicano José Craveirinha, será Obama o maestro capaz de encontrar o ritmo certo para que as palavras, que afluem à boca dos homens pelos mais diversos caminhos, se tornem todas irmãs?<br /><strong><br />A Fraternidade das palavras</strong><br /><br />O céu </div><div>É uma m´benga</div><div>Onde todos os braços das mamanas</div><div>Repisam os bagos de estrelas.</div><br /><div>Amigos:</div><div>As palavras mesmo estranhas</div><div>Se têm música verdadeira </div><div>só precisam de quem as toque </div><div>ao mesmo ritmo </div><div>para serem todas irmãs.</div><br /><div></div><br /><div>E eis que num espasmo</div><div>De harmonia como todas as coisas</div><div>Palavras rongas e algarvias ganguissam</div><div>Neste satanhoco papel</div><div>E recombinam o poema.<br /></div><br /><div><em>m´benga - pote de barro</em></div><div><em>mamanas - mulheres </em></div><div><em>ronga – dialecto mais meridional do grupo linguístico banto tsonga. É falado numa pequena área que inclui a cidade do Maputo</em></div><div><em>gangussam – namoram</em></div><div><em>satanhoco – uma coisa que não presta<br /></em><br />Terá chegado a hora de os homens poderem, orgulhosamente, assumir a sua verdadeira identidade, cidadãos da mesma pátria, a Terra, sem, contudo, excluir ou renegar as suas múltiplas e preciosas pertenças particulares?<br />Terá chegado a hora de dar alma ao poema de Miguel Torga dentro em breve eternizado no granito dum banco no boulevard Saint-Laurent, a nossa Main ?<br /><br /><strong>Ter um destino é não caber no berço<br />onde o corpo nasceu,<br />é transpor as fronteiras uma a uma</strong></div><div><strong>e morrer sem nenhuma</strong></div>Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-52141943921416804502008-10-15T19:41:00.006-04:002008-10-20T21:36:38.417-04:00Vem aí uma nova era<a href="http://4.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/SPaBAEyfVeI/AAAAAAAAADo/HvlqXXyzYuE/s1600-h/financa.gif"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5257531453287126498" style="DISPLAY: block; MARGIN: 0px auto 10px; CURSOR: hand; TEXT-ALIGN: center" alt="" src="http://4.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/SPaBAEyfVeI/AAAAAAAAADo/HvlqXXyzYuE/s320/financa.gif" border="0" /></a><br /><div>“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,<br />Muda-se o ser, muda-se a confiança;<br />Todo o mundo é composto de mudança,</div><div>Tomando sempre novas qualidades.”<br />(...)<br /><br />Assim falava o génio de Camões. Sempre assim foi, desde que o mundo é mundo. Sempre assim será enquanto a Terra rodar em torno do sol.<br />As eras sucedem-se umas atrás das outras com o seu inevitável cortejo de transformações.<br />Estamos a atravessar a longa era dos vampiros. Com as lúgubres capas negras a esvoaçar aos ventos da mudança, cada vez mais grotescos na sua desorientação com o rumo dos acontecimentos que já não conseguem controlar, ainda são os mesmos do poema do José Afonso:<br /><br />“No céu cinzento </div><div>Sob o astro mudo </div><div>Batendo as asas </div><div>Pela noite calada</div><div>Vêm em bandos</div><div>Com pés veludo </div><div>Chupar o sangue </div><div>Fresco da manada<br /></div><div></div><div> </div><div>Se alguém se engana</div><div>Com seu ar sisudo </div><div>E lhes franqueia </div><div>As portas à chegada </div><div>Eles comem tudo </div><div>Eles comem tudo </div><div>Eles comem tudo </div><div>E não deixam nada<br /><br />A toda a parte </div><div>Chegam os vampiros </div><div>Poisam nos prédios </div><div>Poisam nas calçadas </div><div>Trazem no ventre </div><div>Despojos antigos<br />Mas nada os prende </div><div>Às vidas acabadas<br />(...)<br /></div><br /><div>No chão do medo</div><div>Tombam os vencidos</div><div>Ouvem-se os gritos</div><div>Na noite abafad </div><div>Jazem nos fossos</div><div>Vítimas dum credo<br />E não se esgota</div><div>O sangue da manada”</div><div>(...)<br /><br />Mas uma nova era está a bater-nos à porta. Virá mais cedo de que muitos esperavam. Há prenúncios encorajantes no ar que respiramos, nos ventos que sopram, nos indícios que nos chegam de todo o lado.<br />Uma era em que o fulgurante progresso tecnológico dos tempos que correm será finalmente posto ao serviço da prosperidade e do bem-estar de toda a humanidade. A tão apregoada globalização, que até agora foi pretexto para concentrar a riqueza nas mãos de uma oligarquia financeira, rapace e sem escrúpulos, só agora irá realmente começar a dar frutos.<br />Infelizmente, a travessia do deserto, será longa e dolorosa. Mas depois da tempestade, vira a bonança. Quando passar a tormenta que nos flagela, o mundo será melhor. Balizado por valores mais nobres durante tanto tempo atirados para o sótão das velharias sem préstimo, no sinistro reinado do deus-cifrão.<br />Por que caminhos lá chegaremos, ninguém o sabe ainda. No meio de tanta incerteza, só a certeza do poeta José Régio :<br /><br />"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces </div><div>Estendendo-me os braços, e seguros </div><div>De que seria bom que eu os ouvisse </div><div>Quando me dizem: "vem por aqui!" </div><div>Eu olho-os com olhos lassos, </div><div>(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) </div><div>E cruzo os braços, </div><div>E nunca vou por ali...<br />(...)<br /><br />É um átomo a mais que se animou... </div><div>Não sei por onde vou,<br />Não sei para onde vou </div><div>- Sei que não vou por aí!"</div>Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-19101707877548025422008-09-21T12:52:00.003-04:002008-09-21T13:03:37.060-04:00livro-me do desassossego<a href="http://3.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/SNZ8dAq6O8I/AAAAAAAAADY/uGosfUwO7Ls/s1600-h/livro-me.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5248519253584919490" style="FLOAT: right; MARGIN: 0px 0px 10px 10px; CURSOR: hand" alt="" src="http://3.bp.blogspot.com/_wgDFhmY6FMw/SNZ8dAq6O8I/AAAAAAAAADY/uGosfUwO7Ls/s320/livro-me.jpg" border="0" /></a><br /><div><br />Não é segredo para ninguém que o Onésimo Teotónio Almeida é mestre consumado na arte de cronicar. A sua escrita ágil, irónica, fogosa, atravessada por centelhas de génio, é da melhor literatura que Portugal produz.<br />Sempre numa roda viva, pé-cá pé-lá, sobre o seu rio Atlântico, o Onésimo, de quando em vez escreve-me rápidos e-mails, troca dois dedos de conversa, pergunta-me se já me enviou este ou aquele livro. E, para minha grande alegria, passados dias, lá encontro na caixa do correio mais uma obra, sempre com uma dedicatória cheia de carinho que me deixa deslumbrado e enternecido. Desta vez escreveu esta pérola: “Para o Manuel Carvalho, vizinho e companheiro de jornada nesta experiência norte-americana salpicada de pátria.” Estes salpicos de pátria são de arrepiar qualquer um.<br />Melhor apetrechados do que eu para o desempenho desse ofício, deixo aos críticos literários a tarefa de lhe dissecarem a obra, autêntico monumento erguido, com cuidados de ourives da palavra, à vivência multicultural. Para mim, para além de todas as qualidades literárias e acima de todas as outras definições, a obra do Onésimo será sempre, nem sei bem por quê, coisas da infância, creio, um farto e interminável trigal dourado, salpicado de rubras papoilas. O trigal é a prosa densa, profunda, inquieta, questionadora. As papoilas são a brejeirice, o humor vivificante, as piadas sempre bem colocadas e repletas de inteligência.<br />Como ainda cheira a férias e a época não é propícia para grandes elucubrações, para vosso regalo e inebriamento dos sentidos, aqui vos deixo um colorido ramalhete de papoilas colhidas, avulsamente, na obra “<strong>livro-me do desassossego</strong> (Temas e Debates-2006)”.<br /><br />“(...)Salazar, num famoso discurso de 1965, confessava-se, no fundo, um rural e acrescentava que, se pudesse escolher, seria um agricultor.<br />(...) Ao ouvir Salazar na sua confissão pró-agrária, um português descontente exclamara: Então, põe-te a cavar.”<br /><br />“(...) vem a propósito lembrar a magnífica descoberta daquele outro sociólogo segundo quem a verdadeira causa do divórcio é o casamento.”<br /><br />“(...)ali pelos arredores de Vila Real, uma noiva casara-se na virgindade tradicional e obrigatória. Na noite de núpcias cumpriu respeitosamente o matrimónio obedecendo aos desejos e comandos do marido. De manhã, na casa de banho, aconteceu dar de repente com ele nu, e não conteve a interrogação:<br />- Mas isso gasta-se assim tanto?”<br /><br /><br />“(...)Conto aos meus comensais a do outro que estava em casa da amante. Toca o telefone. É o marido. E ela, entre a garganta e o descrédito, a querer despachar a conversa:<br />-Hum-hum, hum-hum...Sim, sim...Hum-hum...<br />Depois o amante intrigado:<br />- Quem era?<br />- O meu marido.<br />- Que queria?<br />- Era só para dizer que hoje vai chegar tarde a casa...está no bar...a jogar bilhar...contigo.<br /><br />“(...)Lembro-me bem dos anos de Trudeau constante notícia da primeira página. (...)Não esqueço uma tirada definidora do seu espírito:<br />O líder da Oposição atacara-o no Parlamento, em Ottawa, acusando-o de esbanjar o erário público na construção de uma piscina na sua residência particular. Trudeau foi ao pódio e, com suprema calma, explicou que sim, era verdade estar a piscina a ser feita. Mas acharia o líder da Oposição ser isso para benefício dele, Primeiro-Ministro? Não tinha ele a experiência do que acontece quando se fazem festas em casa? Que anfitrião desfruta do tempo livre? Em sua casa, onde é continua a roda-viva de visitantes, não lhe resta nenhum tempo paara nada. A piscina, essa gozá-la-iam naturalmente os visitantes mais do que ele. E em golpe final:<br />- Além disso, toda a gente sabe como a minha casa esteve e está sempre aberta a toda a gente, especialmente aos canadianos. Serão todos bem-vindos a dar um mergulho na piscina. Especialmente o senhor líder da Oposição. De preferência antes de a encherem.”</div>Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-87883576127205280862008-06-08T13:46:00.008-04:002008-06-08T19:15:40.749-04:0010 DE JUNHO EM MONTREAL (2008)<a href="http://bp3.blogger.com/_wgDFhmY6FMw/SEwb4BTx9SI/AAAAAAAAAB8/uUQLIT24iLY/s1600-h/10junhomedalha.gif"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5209569518198846754" style="FLOAT: right; MARGIN: 0px 0px 10px 10px; CURSOR: hand" alt="" src="http://bp3.blogger.com/_wgDFhmY6FMw/SEwb4BTx9SI/AAAAAAAAAB8/uUQLIT24iLY/s400/10junhomedalha.gif" border="0" /></a><br /><div>Mais um 10 de Junho. Tempo de honrar a Comunidade.<br />Honra às escolas de língua portuguesa. Honra às associações culturais e recreativas. Honra às instituições religiosas. Honra às instituições financeiras. Honra aos orgãos de comunicação social. Honra aos grupos folclóricos. Honra às filarmónicas. Honra aos nossos estabelecimento de restauração. Honra às gentes anónimas e humildes que, com mãos calejadas, construíram, pedra a pedra, a Comunidade que somos.<br /><br />Como escreveu Manuel Alegre:<br />“Com mãos se rasga o mar. </div><div>Com mãos se lavra.</div><div>Não são de pedras estas casas masde mãos. </div><div>E estão no fruto e na palavra</div><div>as mãos que são o canto e são as armas.”<br /><br />Não obstante um percurso tantas vezes atribulado, com as suas querelas e reconciliações, as suas grandezas e misérias, as suas arrogâncias e humildades, os seus triunfos e fracassos, as suas alegrias e dores, a Comunidade tem sabido, ao longo dos anos, traçar um rumo guiado pelo bom senso e preservar a nossa língua e os nossos valores.<br />Preservar a língua portuguesa como instrumento de comunicação da nossa cultura e de expressão das nossas emoções mais profundas, componente fundamental da nossa sobrevivência enquanto grupo com uma identidade própria. Preservar os valores seculares mais arreigados que nos definem e identificam como portugueses e lusodescendentes, quase sempre entrelaçados com uma espiritualidade profunda que tem a sua expressão mais significativa e relevante em manifestações de religiosidade popular como as festas do Santo Cristo e do Espírito Santo.<br /><br />Jorge de Sena, destacado escritor português, que viveu grande parte da sua vida na Califórnia, onde faleceu em 1978, escreveu frequentemente sobre estes temas, numa preocupação constante com o futuro dos filhos.<br />A propósito da língua, deixou um texto de grande amargura que é uma lição exemplar para todos nós:<br /><br />“Ouço os meus filhos a falar inglês entre eles. Não os mais pequenos só mas os maiores também e conversando com os mais pequenos. Não nasceram cá, todos cresceram tendo nos ouvido português. Mas em inglês conversam, não apenas serão americanos: dissolveram-se, dissolvem-se num mar que não é deles.<br />Venham falar-me dos mistérios da poesia, das tradições de uma linguagem, de uma raça, daquilo que se não diz com menos que a experiência de um povo e de uma língua. Bestas. As línguas, que duram séculos e mesmo sobrevivem esquecidas noutras, morrem todos os dias na gaguez daqueles que as herdaram: e são tão imortais que meia dúzia de anos as suprime da boca dissolvida ao peso de outra raça, outra cultura. Tão metafísicas, tão intraduzíveis, que se derretem assim, não nos altos céus, mas na caca quotidiana de outras.”<br /><br />Desiludido com o materialismo galopante da sociedade americana, escreveu aos filhos uma carta de grande humanismo,onde, num grito do fundo da alma, realça a importância da herança que nos coube e que urge transmitir aos vindouros “em memória do sangue que nos corre nas veias”:<br /><br />CARTA A MEUS FILHOS...<br /></div><div>Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo.<br />(...)<br />Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a. É isto o que mais importa - essa alegria. Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá. Que tudo isto sabereis serenamente, sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença, ardentemente espero. Tanto sangue, tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - não hão-de ser em vão. Confesso que multas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura me submerge inconsolável. (...)</div><div>E por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram. </div>Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-29212710418461559852007-08-28T20:30:00.000-04:002007-08-28T20:35:55.686-04:00De Cicouro ao Pico da Pedra<a href="http://bp1.blogger.com/_wgDFhmY6FMw/RtS-r3V0z1I/AAAAAAAAAAo/MNZeuP5sYEo/s1600-h/cicouro1.GIF"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5103913938516758354" style="FLOAT: right; MARGIN: 0px 0px 10px 10px; WIDTH: 300px; CURSOR: hand; HEIGHT: 213px" height="225" alt="" src="http://bp1.blogger.com/_wgDFhmY6FMw/RtS-r3V0z1I/AAAAAAAAAAo/MNZeuP5sYEo/s320/cicouro1.GIF" width="264" border="0" /></a><br /><div>Já em tempos escrevi que há certas pessoas escolhidas, que vieram a este mundo para desfraldar ao vento a bandeira da mudança, para agitar as almas atoladas no marasmo dum quotidiano sem história. São elas o fermento da transformação, tocadas pelo condão, pela graça, de dar forma ao informe, voz ao silêncio, luz às trevas, sentido ao incompreensível. O Onésimo Teotónio Almeida, com todo o vigor da Palavra que o habita, é uma delas.<br />E mais uma vez o comprovei. Há tempos, enviou-me um e-mail perturbador, que virou toda a minha vida do avesso. Rezava mais ou menos assim:<em> Manel, em recente viagem a Portugal andei por terras de Miranda do Douro e fui até Cicouro, à sua terra. Perguntei por si mas disseram-me que nos últimos anos já não aparecia, que ficava por Miranda quando ia a Portugal.</em><br />Era verdade. A verdade nua e crua. Incompreensivelmente, sem justificação, nos últimos anos, vezes sem conta me ficara por Miranda, sem coragem para galgar os escassos vinte quilómetros que me separavam da terra que me vira nascer.<br />Assaltou-me uma mescla de tristeza e de vergonha. Compenetrado do meu indigno e imperdoável comportamento, logo ali, frente ao computador e ao e-mail apontado ao coração como uma adaga acerada fiz a promessa: este ano irei a Cicouro.<br />E cumpri. Foi uma peregrinação purificadora e catártica. Calcorreei ruas empedradas e tortuosas. Andei por todo o lado. Mostrei-me. Encontrei familiares perdidos. Estampei na fronte um cartaz que berrava: estou aqui, o filho pródigo voltou, ainda não vos esqueci.<br />Sempre num turbilhão, voraz, vasculhei todos os recantos do meu imaginário infantil: a casa onde nasci; a fonte de chafurdo onde tantas vezes me dessedentei; o bebedouro dos animais onde, em dia aziago, quase me afogara; galguei velhos caminhos poeirentos castigados pela canícula; embrenhei-me pela imensidão dos trigais dourados; sorvi o perfume inebriante dos braçados de flores silvestres; refresquei-me nas sombras frondosas dos castanheiros; numa alegria a irromper do fundo da memória da infância, assaltei pombais encarrapitados nos montes e alvoroçei a paz das revoadas de pombos selvagens.<br />Só quando o fôlego me faltou e as pernas fraquejaram de vez , é que me recolhi na abrigada da Casa do Povo onde enxuguei o suor da fronte e saboreei uma cerveja entre dois dedos de conversa com um pequeno grupo de jovens arreigados aos valores da terra ancestral. Jovens generosos que ainda acreditam que aquelas aldeias raianas, quase desertas, poderão um dia renascer das próprias cinzas como a fénix da lenda e alcançar uma prosperidade que parece tão longínqua.<br />Finalmente, sentia a alma apaziguada mas o meu esgrimir de emoções com o espírito do Onésimo não se ficou por aqui. Se ele tivera a coragem de se aventurar até à minha aldeia natal perdida no planalto mirandês, certamente uma das últimas fronteiras de Portugal, também eu, em réplica exemplar, iria visitar a Pico da Pedra, a terra que o viu nascer.<br />Assim acertado na minha cabeça, na viagem de regresso a Montreal, detive-me um punhado de dias em S. Miguel e, numa pausa dos maravilhosos passeios pela ilha deslumbrante, talvez um dos últimos paraísos deste mundo tão violentado, foi uma enorme alegria para mim deambular, sem pressas, a sorver a história de cada pedra, pelas ruas adormecidas e tranquilas do Pico da Pedra.<br />Lugar onde a paz parece continuar a reinar como em 1936 quando Luís Dias Martins Carreiro compôs o Hino do Pico da Pedra:<br />(…)<br /><em>Vivemos em doce vida!<br />Numa paz doce e ditosa.<br />Nesta aldeia tão querida,<br />Terra linda tão formosa.<br />(...)</em><br /><br />Já agora acrescento, num último retoque, em jeito de florilégio, que na aprazível e polivalente Casa do Povo está instalada uma interessante biblioteca denominada precisamente “Sala de leitura Onésimo Teotónio Almeida”. Prova real de que a aldeia não esqueceu um dos seus mais dilectos filhos.<br />Após tão frutuosa viagem, tudo se parecia conjugar para um regresso tranquilo a Montreal. Mas (in)felizmente a ambição dos homens é insaciável. Por mais que a tentasse afugentar, não me saía da cabeça a soberba descrição que no livro Onze Prosemas o Onésimo faz da fulgurante aparição do Pico com que se deparou, inesperadamente, numa das suas frequentes viagens aéreas entre as duas margens do seu rio Atlântico(1).<br />Regalem-se com este suculento naco de prosa, a evocar um realismo mágico de qualidade insuperável que um Borges ou um Garcia Marques não desdenhariam assinar:<br /><em>O comandante avisa We are presentrly fflying north of Terceira Azores quando eu julgava deveríamos andar a roçar os gelos da Gronelândia e súbito uma força atravessa-me a espinha endireita-me na cadeira e faz-me abrir uma nesga da minha persiana (...)<br />Nada de ilha e nem sequer mar só nuvens e mais branco e de repente uma alucinação Não é a serra de Santa Bárbara essa não fura assim este algodão espesso mas o Pico ele mesmo ou a ponta dele um cone de azul plantado sobre aquela imensidão de branco sereno e altivo imponente e majestático altaneiro e belo<br />(...)Apetece-me chamar os vizinhos dar um berro no microfone ABRAM AS PERSIANAS E VEJAM ESTE ESPECTÁCULO mas ninguém mesmo ninguém sabe ou sequer preocupa em saber o que vai lá fora são todos estrangeiros lêem livros em inglês vêm de Londres e vão para New York O que lhes poderá dizer a treta de um triângulo azul escanchado nas nuvens e já me dá vontade de partir a cara a quem na minha cabeça se referiu ao Pico em termos assim tão grosseiros(...)<br /></em><br />É de ficar com água na boca, reconheçam lá. Já agora que estava em maré alta de emoções e mesmo de sorte, levando mais longe o meu arrojo, talvez também eu pudesse regalar-me com tão suculenta iguaria do espírito.<br />Nesta feição, enquanto ainda sobrevoava o arquipélago dos Açores, eu bem esticava o pescoço e espiolhava o espesso manto de nuvens na esperança de que o Pico tivesse forças para irromper por ali acima e mostrar-se em toda a sua magnificiência ao meu olhar deslumbrado.<br />Mas de nada me valeu o esforço hercúleo. Talvez por só os escolhidos dos deuses poderem usufruir de tal privilégio. Talvez por a minha crença não ser suficientemente forte. As nuvens continuavam espessas, o céu escurecia cada vez mais a pressagiar tempestade. Finalmente, num último golpe de misericórdia, a voz monocórdica do comandante do avião anunciou que iríamos atravessar uma zona de grande turbulência e que deveríamos apertar os cintos de segurança. Adeus gloriosa alucinação do Pico.<br />Era preciso render-me à evidência. Baixar os braços. Encarar de frente a realidade. E reconhecer que o Onésimo continua imbatível.<br /><br />(1) <em>Ao fim de vinte e cinco anos de fazer-me ponte sobre o Atlântico, pé-cá, pé-lá, desembarcando em Lisboa, Ponta Delgada, Lages, ou Boston, o oceano tornou-se bem mais estreito e instalou-se num quotidiano de onde se vê sempre a outra margem, com as ilhas de permeio a facilitarem o salto.</em></div>Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-9132795992097166462007-02-12T12:59:00.000-05:002007-02-12T13:03:35.703-05:00Vinho do Porto<a href="http://bp0.blogger.com/_wgDFhmY6FMw/RdCr-NPyHII/AAAAAAAAAAM/nyUM91R4Oss/s1600-h/vinhodoporto.gif"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5030709868968942722" style="FLOAT: right; MARGIN: 0px 0px 10px 10px; CURSOR: hand" alt="" src="http://bp0.blogger.com/_wgDFhmY6FMw/RdCr-NPyHII/AAAAAAAAAAM/nyUM91R4Oss/s320/vinhodoporto.gif" border="0" /></a><br /><div><br /><br />No outono de 1679, um barco com um carregamento de vinho do porto largou a cidade do Porto com destino a Londres. O que nessa época era frequente, a meio da viagem, foi atacado por um corsário francês a custo do qual conseguiu escapar, navegando para o alto mar.</div><div>Acossado por violenta tempestade, afastou-se imenso da sua rota pelo que o capitão tomou a decisão de ir fundear em S. João da Terra Nova para reabastecimento e repouso da tripulação.</div><div>Impossibilitados de prosseguir viagem devido ao rigor do inverno, só na primavera seguinte se fizeram de novo ao mar. Finalmente, chegados a Londres, constataram, com natural espanto, que a prolongada estadia na Terra Nova tinha dado ao vinho um aroma e um sabor agradavelmente diferentes. </div><div>Desde então, a companhia proprietária do carregamento passou a enviar anualmente grandes quantidades de vinho para envelhecer na Terra Nova.Assim surgiu este celebrado porto e esta espantosa lenda perpectuada nos rótulos das garrafas dos portos Newman's. </div><div> </div><div><em>Imagem:Cena da chegada do "Retriever" à Terra Nova com um carregamento de vinho do porto, em 1892. Mural existente no Newman's Wine Lodge, Portugal</em></div><div> </div>Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-1162860152577060872006-11-06T19:39:00.000-05:002006-11-06T19:42:32.590-05:00Ferreira de Castro e o Satúrnia<a href="http://photos1.blogger.com/blogger/910/3711/1600/voltaaomundo.0.jpg"><img style="FLOAT: right; MARGIN: 0px 0px 10px 10px; CURSOR: hand" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/910/3711/320/voltaaomundo.0.jpg" border="0" /></a><br /><em>“Lá vem a Nau Catrineta,</em><br /><em>que tem muito que contar!</em><br /><em>Ouvide, agora, senhores,</em><br /><em>Uma história de pasmar.”</em><br /><br />É este belo poema do Cancioneiro Português que relembro quando desato a sonhar com viagens. Pela singeleza. Pelo sobrenatural. Pelo maravilhoso que encerra. Por tão exemplarmente reflectir a alma portuguesa.<br />Para nós, portugueses, viajar está metaforicamente entrelaçado com mar, mistério, aventura, naufrágios, lágrimas, despedidas. É a magia dos cais de embarque e desembarque. É o canto das sereia que fez de nós um povo errante. É o maravilhoso em que foi moldada a nossa idiossincracia imbuída de saudade, tristeza e ânsia de partir à aventura.<br />Acredito ser este endémico “apelo dos mares” que tão firmemente ancorou o navio Satúrnia no imaginário colectivo da diáspora luso-canadiana e lhe deu a projecção de símbolo da nossa identidade que hoje arvora.<br />Aqueles homens que naquele já longínquo dia 13 de Maio de 1953, meio atarantados pelo marulhar das ondas bravas contra o molhe do cais, desembarcaram do barco Satúrnia, em Halifax, após viagem sem fim pelos mares profundos das suas angústias e incertezas eram, mais uma vez, a materialização do “apelo” que a Ode marítima do Alvaro de Campos, o conhecido heterónimo do Fernando Pessoa, tão magistralmante condensa:<br /><br /><em>(...)<br />Ah, quem sabe, quem sabe,</em><br /><em>Se não parti outrora, antes de mim,</em><br /><em>Dum cais; se não deixei, navio ao sol</em><br /><em>Oblíquo da madrugada,</em><br /><em>Uma outra espécie de porto?<br />(...)<br />Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações! </em><br /><em>O Grande Cais Anterior, eterno e divino!<br />(...)<br />Chamam por mim as águas.<br />Chamam por mim os mares.<br />Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,<br />As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar<br />(...)<br /></em><br />Mas não se ficam por aqui os “mistérios” do navio Satúrnia e as suas ligações à cultura e às letras portuguesas. Facto menos conhecido, mas significativo, premonitório ouso afirmar, foi precisamente a bordo do Satúrnia que, em 1939, o escritor português Ferreira de Castro, iniciou a viagem que o haveria de levar aos quatro cantos do mundo. Périplo de cerca de dois anos, na companhia da sua mulher, Elena Muriel , que registou minuciosamente na monumental obra “A Volta ao Mundo, publicada em 1944. Já então era um escritor consagrado, autor de obras mundialmente aclamadas como Os Emigrantes e A Selva que ficarão, para sempre, como marcos da literatura portuguesa da emigração. Estava-se em vésperas do desencadear da segunda grande guerra mundial e a atmosfera tensa que então reinava a bordo do Satúrnia era, com certeza, muito diferente daquela que encontraram os pioneiros portugueses, em 1953. Atente-se na descrição de Ferreira de Castro, já embarcado para a sua grande aventura:<br /><br /><em>“O «Saturnia» desce, lentamente, o Tejo e, à direita, entre as velas do rio, fulge a Torre de Belém, símbolo do país das grandes viagens. Mais abaixo, a luz vespertina enche de colorido as vivendas do Estoril, enquanto lá ao fundo, na serra de Sintra, irisada bruma dá ao castelo um aspecto fantástico.<br />Já no Atlântico, contornando a costa portuguesa, e, depois, a espanhola, os passageiros que vêm de Nova York entregam-se aos jornais ingleses, recém-comprados em Lisboa, reunindo-se, à noite, não em frente da orquestra, que toca, solitária, no grande salão, mas junto dos aparelhos de telefonia que espalham notícias do Mundo convulso. E, contudo, estende-se, lá fora, um luar sortílego e um mar calmo, numa noite de maravilha propícia a fazer-nos sonhar com as mais belas coisas da vida. Mas o navio está cheio dessa inquietação que, hoje, tortura os homens, no planeta inteiro.”<br /></em><br />Estaria longe de adivinhar Ferreira de Castro que o navio em que acabara de embarcar iria ser palco, anos mais tarde, da mais extraordinária odisseia da diáspora luso-canadiana. Foi mera coincidência, feliz convergência de acontecimentos no universo das probabilidades ou seria o Satúrnia um daqueles locais- frémito de que falava o falecido escritor luso-canadiano Rui Cunha Viana? Locais onde tudo pode acontecer mesmo o que não acontece. Sabe-se lá, estranhas são as voltas que a vida tece.Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-1162859464590524272006-11-06T19:27:00.000-05:002006-11-06T19:31:04.603-05:00A lenda do barco em chamas<a href="http://photos1.blogger.com/blogger/910/3711/1600/gasparestatua.0.jpg"><img style="FLOAT: right; MARGIN: 0px 0px 10px 10px; CURSOR: hand" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/910/3711/320/gasparestatua.0.jpg" border="0" /></a><br />Numa crónica anterior interrogava-me eu quantas histórias não ficarão por contar. Quantas vidas magníficas ficarão para sempre irremediavelmente ignoradas, cobertas pelo manto espesso do tempo que corre à desfilada. Quanto material, palpitante de vida, estará à espera de saltar para as páginas de romance fremente por ser escrito, com a ansiedade com que o trigo ondulante espera que o transformem em pão.<br />A saga dos irmãos Corte-Real e das suas viagens ao Novo_Mundo, envoltas em mistério e quantas vezes em fantasia, é mais uma dessas histórias fascinantes. Ao ponto de ter inspirado ao Fernando Pessoa o seu belo poema Só:<br /><em></em><br /><em>A nau de um deles tinha-se perdido</em><br /><em>No mar indefinido.</em><br /><em>O segundo pediu licença ao Rei</em><br /><em>De, na fé e na lei</em><br /><em>Da descoberta, ir em procura</em><br /><em>Do irmão no mar sem fim e a névoa escura.<br />Tempo foi. </em><br /><em>Nem primeiro nem segundo</em><br /><em>Volveu do fim profundo</em><br /><em>Do mar ignoto à pátria por quem dera</em><br /><em>O enigma que fizera.</em><br /><em>Então, o terceiro e El-Rei rogou</em><br /><em>Licença de os buscar, e El-Rei negou.<br />(...)<br /></em><br />Que belo romance histórico daria! Os ingredientes estão todos lá. Qualquer dia irei escrever à minha amiga Deana Barroqueira, escritora nascida nos Estados Unidos mas a residir em Portugal e sugerir-lhe este tema. Autora consagrada de romances históricos de aventuras, com certeza irá considerar seriamente a minha sugestão. Então quando lhe revelar a lenda fascinante do “Barco em Chamas” da Île au Héron, sei, adivinho que não poderá resistir ao desejo de deitar mãos à obra.<br />Esta lenda, pouco lisonjeira para os rudes navegadores portugueses da época, encontrei-a numa página da internet do Centre d'études acadiennes da Université de Moncton e em tradução livre e resumida conta-se assim:<br />Em 1500, Gaspar Corte-Real, navegador português, chegou a estas paragens e, sob o pretexto de dar uma festa em sua honra, convidou os principais chefes indígenas a subir a bordo da sua caravela. Embriegou intencionalmente os incautos desgraçados que quando acordaram, sobressaltados, já estavam em pleno mar, a caminho de Portugal onde foram vendidos como escravos. Deslumbrado com o sucesso da sua viagem, Gaspar empreendeu nova viagem em 1501 tendo chegado desta vez à Île au Héron, situada na Baie des Chaleurs, no Golf St-Laurent, onde lançou âncora.<br />Alertados por mais esta incursão, um numeroso grupo de índios, sedentos de vingança, reuniu-se no local e numa noite muito escura atacou a caravela e massacrou toda a equipagem. Somente Corte-Real foi poupado: a sua morte deveria ser mais lenta e dolorosa. Amarrado, foi colocado sobre um rochedo do Héron, à beira-mar. Depois de durante mais de três horas o terem martirizado atrozmente, abandonaram-no à mercê da maré que subia lentamente e que acabou por engolir o infeliz navegador.<br />No verão de 1502, Miguel Corte-Real , irmão de Gaspar, inquieto pela falta de novas, partiu por sua vez de Lisboa e após longa viagem alcançou a Baie des Chaleurs onde encontrou a caravela abandonada do irmão encalhada em terra.<br />O barco parecia intacto, não se avistava vivalma. Mas mal se aproximaram, de surpresa, várias canoas rodearam a caravela e, ágeis como macacos, os índios subiram rapidamente a bordo e massacraram parte da tripulação. O capitão e os restantes sobreviventes ao assalto inesperado, foram-se refugiar na proa da embarcação que, sem governo, partiu à deriva, com todos os combatentes a bordo. Subitamente, deflagrou um grande incêndio que alastrou rapidamente pelo barco que, com as velas em chamas, singrava velozmente sobre as águas. Só um dos índios sobreviveu à catástrofe para contar o que aconteceu. Do destino de Miguel Corte-Real e dos seus companheiros não narra a lenda deixando em aberto todas as suposições, entre as quais se inclue o mistério das inscrições talhadas no já célebre Dighton Rock, encontrado séculos mais tarde.<br />A partir desse fatídico dia, geralmente no mistério da noite, frequentemente em vésperas de tempestade, surgia na baía um barco em chamas que fantasmagoricamente singrava sobre as águas apavorando a população da Île au Héron.Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-1162755286582485142006-11-05T14:26:00.000-05:002006-11-05T14:34:46.600-05:00Línguas<a href="http://photos1.blogger.com/blogger/910/3711/1600/AFfotos1.gif"><img style="FLOAT: right; MARGIN: 0px 0px 10px 10px; CURSOR: hand" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/910/3711/320/AFfotos1.png" border="0" /></a><br /><br />Língua!Línguas! Quanta tinta já fez correr esta discussão interminável!<br />Será a língua uma mera ferramenta de comunicação? Será a língua uma parte essencial e imprescindível da nossa identidade? Será a língua a nossa pátria?<br />Onésimo Teotónio de Almeida escreveu que (...)Cultura é tudo o que é criado pelos seres humanos nas suas relações recíprocas e com a natureza. Assim, a linguagem como criação humana insere-se neste conceito de cultura. Ora, ao falar uma língua, uma pessoa não utiliza apenas um código abstracto de sons. As palavras e as frases referem-se a algo, significam alguma coisa. Não subsistem no vácuo, mas antes como imagem de uma realidade. Quando digo «casa», quem me ouve não ouve apenas um som. Também visualiza na sua mente uma determinada imagem de «casa».(...)<br />Usando uma linguagem mais poética, Eduardo Bettencourt Pinto, afirmou que (...)A língua é uma espécie de metafísica que transcende os triviais espaços da comunicação diária. Traz consigo a história de um povo, de um tempo, de um homem e de uma mulher cercados pelas inumeráveis fronteiras do Tempo(...)<br />Na diáspora, para a primeira geração, o confronto crucial entre a língua materna as as línguas do país de acolhimento está magistalmente reflectido no poema Palavras onde me Perco de Avelina da Silveira, uma escritora portuguesa, de origem açoriana, a residir no Ontário:<br /><br />How I long for the days when words were essential!<br />Outros tempos quando a palavra encerrava uma certeza<br />existencial<br />— coeur et mots, moi même in a fabric of being.<br /><br />Foi há tanto tempo que parti...<br />As palavras custam a vir;<br />como se eu as quisesse articular mas houvesse uma pedra<br />na garganta.<br /><br />A voz lusitana escorre sem que dela eu beba,<br />quase alien, porque já não sonho em português.<br /><br />Palavras, words, mots perdus...<br />Labirintos de imagens onde me perco<br />na ânsia de chegar à outra margem de mim.<br /><br />J’ai changé le profil du jour<br />et j’ai perdu mon visage en ce temps,<br />never again myself between the sea and the maples.<br /><br />Oh tragédia de imigrar, de partir sem chegar<br />tecendo na diáspora un être d’ici et de toujours.<br /><br />Demain será un autre pays, un autre matin,<br />but I won’t be here. De identidade dispersa<br />I’ll be searching in yesterday<br />for the name of a water bird among the snow<br /><br />Para a segunda e terceira gerações, que, por vezes, já têm como língua materna outra língua que não a portuguesa, este conflito ganha novos contornos e geralmente é resolvido de forma bem mais harmoniosa. Disse Humberta Araújo, uma jornalista de Toronto, que os jovens são naturalmente diferentes na perspectiva de como olham a cultura e a língua portuguesas. Para esta nova geração lusa a língua é um factor importante a ter em conta, mas não é o principal.<br />Como se depreende, o terreno de jogo já é outro, embora não menos acidentado. Assim o sente o escritor luso-canadiano Paulo da Costa: (...) Nós, seres da diáspora, somos os Centauros do mundo. Impuros. Mesclados. Parcialmente reconhecidos e identificados com o cardume de origem mas simultaneamente apresentando características que nos demarcam e separam desse cardume, somos frequentemente acolhidos com reservas em ambas as orlas. Vistos como seres em limbo, sem tribo nem pátria. Nós que falamos ambas as línguas, nós que nos estendemos de uma orla à outra. Nós as pontes.<br />Mas voltando à questão da língua, é evidente que para as gerações, de origem portuguesa, já nascidas no Canadá, esta já não é uma questão de vida ou de morte como para a primeira geração. A procura da identidade já passa pela valorização de outras e mais diversificadas pertenças culturais. O domínio de mais do que uma língua poderá mesmo ser um factor de estabilidade e de aquisição de novos valores e consequente enriquecimento pessoal. Pode-se ser orgulhosamente português ou portuguesa a cantar ou a escrever em inglês, ou em francês, como o demonstram a cantora Nelly Furtado ou a escritora Erika de Vasconcelos.<br />Embora escrito num espaço geográfico e cultural muito diferente do nosso, este poema do poeta Fracisco Niebro, também ele dividido entre duas línguas, a língua portuguesa e a língua mirandesa, encerra uma preciosa lição:<br /><br />DUES LHÉNGUAS<br /><br />Andube anhos a filo cula lhéngua trocida pula<br />oubrigar a salir de l sou camino i tener de<br />pensar antes de dezir las palabras ciertas:<br />ua lhéngua naciu-me comi-la an merendas bubi-la an fuontes i rigueiros<br />outra ye çpoijo dua guerra de muitas batailhas.<br />Agora tengo dues lhénguas cumigo<br />i yá nun passo sin dambas a dues.<br />Stou siempre a trocar de lhéngua mei a miedo<br />cumo se fura un caso de bigamie.<br />Ua sabe cousas que l’outra nun conhece<br />ríen-se ua de l’outra fazendo caçuada i a las bezes anrábian-se<br />afuora esso dan-se tan bien que sonho nas dues al mesmo tiempo.<br />Hai dies an que quiero falar ua i sale-me la outra.<br />Hai dies an que quedo cun ua deilhas tan amarfanhada que se nun la falar arrebento.<br />Hai dies an que se m’angarabátan ua an la outra<br />i apuis bótan-se a correr a ber quien chega purmeiro<br />i muita beç acában por salir ancatrapelhadas<br />i a mi dá-me la risa.<br />Hai dies an que quedo todo debelgado culas palabras por dezir<br />i ancarrapito-me neilhas cumo ua scalada<br />i deixo-las bolar cumo música<br />cul miedo que anferrúgen las cuordas que las sáben tocar.<br />Hai dies an que quiero traduzir ua pa la outra<br />mas las palabras scónden-se-me<br />i passo muito tiempo atrás deilhas.<br />Antre eilhas debíden l miu mundo<br />i quando pássan la frunteira sínten-se meio perdidas<br />i fártan-se de roubar palabras ua a l’outra.<br />Dambas a dues pénsan<br />mas hai partes de l coraçon an que ua deilhas nun cunsigue antrar<br />i quando s’achega a la puorta pon l sangre a golsiar de las palabras.<br />Cada ua fui pursora de l’outra:<br />l mirandés naciu purmeiro i you afize-me a drumir<br />arrolhado puls sous sonidos calientes cumo lhúrias<br />i ansinou l pertués a falar guiando-le la boç;<br />l pertués naciu-me a la punta de ls dedos<br />i ansinou l mirandés a screbir porque este nunca tubo scuola para donde ir.<br />Tengo dues lhénguas cumigo<br />dues lhénguas que me fazírun<br />i yá nun passo nien sou you sien dambas a dues.Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-1157414389998287412006-09-04T19:57:00.000-04:002012-09-02T11:56:56.337-04:00<a href="http://photos1.blogger.com/blogger/910/3711/1600/angelica.png"><img style="FLOAT: right; MARGIN: 0px 0px 10px 10px; CURSOR: hand" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/910/3711/200/angelica.png" border="0" /></a><br /><strong>
"Recentemente, foi inaugurada uma praça em Montreal em homenagem a Marie-Josèphe Angélique(Entre a av. de l'Hôtel-de-Ville e a estação de métro Champ-de-Mars)"
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UMA BELA HISTÓRIA POR CONTAR<br /></strong><br />Quantas histórias ficam por contar? Quantas vidas magníficas ficarão para sempre irremediavelmente ignoradas, cobertas pelo manto espesso do tempo que corre à desfilada?<br />E algumas delas, modeladas pela mão de escritor inspirado seriam diamantes a refulgir na galeria das obras imortais.<br />É essa a grande dor dos ficcionistas. Uma dor que rói até às entranhas, nascida da percepção inconformada de que o mundo invisível é muito mais vasto do que aquele que se nos apresenta ao olhar tantas vezes descuidado.<br />Como eu gostaria de ter “engenho e arte” para contar a história de uma menina negra nascida na ilha da Madeira e que morreu em Montreal naquele terrível dia 21 Junho de 1734, coberta de opróbrio, às mãos de impiedoso carrasco.<br />Como se chamaria essa menina? Maria? Provavelmente. Como provavelmente seria filha de escravos negros dos engenhos da cana do açucar da ilha da Madeira. Como viveu naquela ilha maravilhosa? Que sonhos lhe povoavam a mente de criança? Foi uma criança feliz? De que forma recambolesca veio parar à Nova França? Acorrentada no porão dalgum barco negreiro? De forma mais civilizada, na companhia do seu novo amo, o comerciante François Poulin? Que pulsões lhe lavraram o corpo de ébano quando os seus olhos deslumbrados (assustados?) viram as primeiras neves a tombar, tocadas pelo frio e pela solidão? Que desvario a invadiu quando, em língua estranha e hostil lhe trocaram o nome, lhe cravaram, a ferro e fogo, na alma o ferrete da sua nova condição de escrava irremediavelmente perdida nas terras polares?<br />Tantas interrogações, tantas zonas de penumbra que só a imaginação fértil do criador poderá retocar de luz e trazer à tona do compreensível. Tanto material, palpitante de vida, à espera de saltar para as páginas de romance fremente por ser escrito, com a ansiedade com que o trigo ondulante espera que o transformem em pão.<br />Que era bela, cheia de vida, atrevida, impetuosa, é claro como a água. Adivinho-lhe o corpo escultural em requebros lascivos. Pressinto-lhe os olhos profundos a lampejar poalhas douradas. Ouço-lhe as risadas em cascata a sugerir promessas mal cumpridas. Respiro-lhe os silêncios misteriosos de selva africana. Sinto-lhe o sangue em alvoroço, seiva farta e generosa a jorrar na aridez das vidas árduas e acabrunhadas. Só assim se compreende que tivesse ateado tantas paixões e destroçado tantos corações desde o escravo César ao branco Claude Thibault que se perdeu por sua causa. Só assim se compreende que tivesse morrido de forma tão trágica. Porque as sociedades atoladas num quotidiano sem histórias não perdoam àqueles que vêm, com a sua rebeldia, agitar as águas miasmáticas e estagnadas.<br />Em 1730, foi (re)baptizada, na cidade de Montreal, com o nome de Marie-Josèphe Angélique. Nesse dia, a criança que talvez se chamasse Maria, refugiou-se no mundo inacessível do sonho quase cósmico onde manteve acessa, pressinto-o, a chama dum regresso libertador à sua ilha, montada no seu corcel de fogo e luz.<br />A vida da escrava Marie-Josèphe Angélique, que supostamente na noite fatídica de 10 de Abril de 1734 incendiou meia Montreal, está imortalizada e analisada de forma mais ou menos romanesca numa profusão de obras literárias e documentários nascidos ao longo dos anos. Já faz, inegavelmente, parte integrante do imaginário colectivo e da História do Quebeque.<br />Principalmente agora que a governadora Geral do Canadá, Michaëlle Jean, num gesto arrojado e corajoso a lançou para as luzes da ribalta ao prestar-lhe uma sentida e significativa homenagem pública e que o Centre d'histoire de Montréal resolveu montar uma exposição que decorrerá de 12 outubro de 2006 até 25 Março de 2007 para além de lhe dedicar uma bem documentada e articulada página web integrada na série Grands Mystères de l’histoire canadienne.<br />Sim, a história de Marie-Josèphe Angélique está contada e a sua memória finalmente reabilitada. Uma reabilitação tardia mas que é, mesmo assim, um facho de esperança que ilumina o caminho de todos aqueles que aspiram a um mundo humanizado em plena harmonia com a natureza.<br />Mas está por contar a história mais bela de todas. A mais pura, única como o mais precioso metal que resta no cadinho, criado pelas mãos mágicas de alquimista febril. A história da pequena Maria(?). Desde o dia do seu nascimento até ao trágico dia em que foi (re)baptizada com esses áspero nome de Marie-Josèphe Angélique. A história da criança que se fez mulher por entre destroços e ruinas dum mundo convulso.<br />As suas cinzas ficaram em Montreal, espalhadas aos quatro ventos pela maldade dos homens mas o seu espírito, luminoso e puro, esse, partiu, acredito, em voo silente, para a sua bela ilha da Madeira. É até muito possível que ainda por lá ande, na forma de esbelta pomba branca, a ruflar sobre as cabeças dos amorosos.Manolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-1157385509119416912006-09-04T11:54:00.000-04:002006-09-04T17:43:59.476-04:00<a href="http://photos1.blogger.com/blogger/910/3711/1600/andorinhas.0.jpg"><img style="FLOAT: right; MARGIN: 0px 0px 10px 10px; CURSOR: hand" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/910/3711/200/andorinhas.0.jpg" border="0" /></a><br /><strong>Andorinhas na alma</strong><br /><br /><br />Em recente estrevista ao Portal da Literatura, dizia Cristina Norton, uma escritora nascida na Argentina mas a viver em Portugal há mais de 30 anos, que, passo a citar, <em>a credito que quem não sabe encontrar a felicidade nas pequenas coisas tampouco a vai encontrar nas grandes</em>.<br />Nesta certeza, apetece-me continuar a escrever (falar) sobre esses nadas tão grandes que influenciam decisivamente e, estou em crer, que comandam as nossas sinuosas existências.<br />Aqui estou mais uma vez no parque Jarry, que frequento agora geralmente depois do jantar. Cumprida mais uma longa e retemperadora caminhada, sento-me num dos bancos que bordejam o pequeno lago.<br />Anoitece serenamente. Respira-se paz, como se o bulício da cidade que ruge tão perto não pudesse chegar aqui, impedido por mãos protectoras. A brisa murmura na folhagem das árvores. Pássaros chilreiam por entre os juncos. Há esquilos a cabriolar sobre os relvados. Há patos a singrar no espelho de água. Há crianças. Muitas crianças. Há mulheres orientais envoltas nos seus véus de seda colorida. Num banco ao lado, um bando de velhos italianos, encanecidos e sulcados pela rispidez da vida, palram como gralhas. Adivinho-lhes os farrapos de recordações, tantas, tantas, a modular as palavras assanhadas.<br />Ergo os olhos num ritual catártico, em busca também de tempos longínquos e, lá no alto, sobre o lago, na vertigem do seu voo nervoso, as andorinhas riscam a abóbada celeste em arabescos indecifráveis e intermináveis.<br />Nestes tempos conturbados em que mais uma vez os homens se matam uns aos outros em nome dos seus pequenos deuses, envolve-me o misticismo apazigante e reconciliante da oração “Aos simples” do poeta Guerra Junqueiro:<br /><br /><em>Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,<br />Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.<br />Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares<br />Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,<br />Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.<br />Era a hora em que já sobre o feno das eiras<br />Dormia quieto e manso o impávido lebréu.<br />Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,<br />E a Lua branca, além, por entre as oliveiras,<br />Como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!...<br />E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,<br />Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,<br />Eu balbuciava a minha infantil oração,<br />Pedindo ao Deus que está no azul do firmamento<br />Que mandasse um alívio a cada sofrimento,<br />Que mandasse uma estrela a cada escuridão.<br /></em><br />Acendem-se, feéricos, os candeiros que iluminam o lago. Sombras mais densas começam a alastrar pelos tapetes sem fim de relva. Regressam ao lares os italianos já trôpegos. As andorinhas continuam, lá no alto, a desenhar sonhos na minha alma de criança.<br /><br />lusocanadiano-MontrealManolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33766241.post-1157229461107566702006-09-02T16:35:00.000-04:002006-09-04T17:47:19.880-04:00<a href="http://photos1.blogger.com/blogger/910/3711/1600/castanhasassadas.jpg"><img style="FLOAT: right; MARGIN: 0px 0px 10px 10px; CURSOR: hand" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/910/3711/200/castanhasassadas.jpg" border="0" /></a><br /><strong>Quentes e boas<br /></strong><br />Tempos houve em que Portugal respirava ao ritmo duma miríade de pregões que já fazem parte integrante do nosso imaginário colectivo. E feliz é o povo que conseguiu amealhar tamanha riqueza e incorporá-la na sua identidade milenar.<br />Quem não recorda hoje com saudade e ternura os pregões das peixeiras, dos ardinas, dos cauteleiros e das mais variadas figuras típicas que, na azáfamada do ganha-pão diário, enchiam as ruas de Lisboa e das nossas cidades de sons, cor, luz e vida?<br />Mas há pregões que resistem à voragem do tempo e do progresso. Quem quer quentes e boas, quentinhas?, ainda hoje apregoam os vendedores ambulantes de castanhas assadas quando ciclicamente chegam as brumas do outono.<br />Evocação que nos faz rebentar com saudades do cheiro a castanhas a saltar nos assadores de barro, dos novelos espessos de fumo acre que acinzentam ainda mais as tardes friorentas e envolvem num manto brumoso as calçadas tortuosas e polidas. Eterna inspiração para tantos poetas e pintores, esses caçadores de nadas tão grandes.<br />Há dias, um poeta, - sim, só um poeta pode aventurar-se a tal loucura - instalou uma carripana toda engalanada na Philippe Square, em pleno centre-ville de Montreal, onde vende castanhas assadas com a bravura dum semeador de sonhos. De tempos a tempos, para delícia dos transeuntes, toca uma sineta que ressoa estridentemente pelas esquinas da praça a arrebanhar os crentes para um qualquer ritual catártico. Não sei qual é o seu país de origem nem me interessa sabê-lo, mas pela profundeza do olhar limpo adivinha-se que é homem que viu muitos lugares e muitas almas. E que sabe alguma coisa acerca das fomes que consomem as criaturas transviadas pelas veredas do mundo e da vida.<br />Por três dólares, comprei um cartucho de castanhas que recolhi na concha das mãos com a emoção de quem segura um recém-nascido. Minto, só agora reconheço que aquilo não era um cartucho de castanhas mas sim um rutilante poema que se escondia aos olhos menos atentos. Três dólares por um poema tão belo. Mas que pechincha!<br />Pelo sorriso enigmático que lhe arqueou os lábios e lhe acendeu fogueiras nos olhos, desconfio que o vendedor-poeta adivinhava a razão da minha emoção e que me lia descaradamente na alma como num livro aberto.<br />A avaliar pela fraca afluência de compradores, pode o negócio ser fraco e de pouco futuro, mas enquanto durar, estou certo que o malandro se deve divertir à farta, lá isso deve.<br /><br />lusocanadiano, montrealManolacashttp://www.blogger.com/profile/08269378421021538873noreply@blogger.com0