terça-feira, agosto 28, 2007

De Cicouro ao Pico da Pedra


Já em tempos escrevi que há certas pessoas escolhidas, que vieram a este mundo para desfraldar ao vento a bandeira da mudança, para agitar as almas atoladas no marasmo dum quotidiano sem história. São elas o fermento da transformação, tocadas pelo condão, pela graça, de dar forma ao informe, voz ao silêncio, luz às trevas, sentido ao incompreensível. O Onésimo Teotónio Almeida, com todo o vigor da Palavra que o habita, é uma delas.
E mais uma vez o comprovei. Há tempos, enviou-me um e-mail perturbador, que virou toda a minha vida do avesso. Rezava mais ou menos assim: Manel, em recente viagem a Portugal andei por terras de Miranda do Douro e fui até Cicouro, à sua terra. Perguntei por si mas disseram-me que nos últimos anos já não aparecia, que ficava por Miranda quando ia a Portugal.
Era verdade. A verdade nua e crua. Incompreensivelmente, sem justificação, nos últimos anos, vezes sem conta me ficara por Miranda, sem coragem para galgar os escassos vinte quilómetros que me separavam da terra que me vira nascer.
Assaltou-me uma mescla de tristeza e de vergonha. Compenetrado do meu indigno e imperdoável comportamento, logo ali, frente ao computador e ao e-mail apontado ao coração como uma adaga acerada fiz a promessa: este ano irei a Cicouro.
E cumpri. Foi uma peregrinação purificadora e catártica. Calcorreei ruas empedradas e tortuosas. Andei por todo o lado. Mostrei-me. Encontrei familiares perdidos. Estampei na fronte um cartaz que berrava: estou aqui, o filho pródigo voltou, ainda não vos esqueci.
Sempre num turbilhão, voraz, vasculhei todos os recantos do meu imaginário infantil: a casa onde nasci; a fonte de chafurdo onde tantas vezes me dessedentei; o bebedouro dos animais onde, em dia aziago, quase me afogara; galguei velhos caminhos poeirentos castigados pela canícula; embrenhei-me pela imensidão dos trigais dourados; sorvi o perfume inebriante dos braçados de flores silvestres; refresquei-me nas sombras frondosas dos castanheiros; numa alegria a irromper do fundo da memória da infância, assaltei pombais encarrapitados nos montes e alvoroçei a paz das revoadas de pombos selvagens.
Só quando o fôlego me faltou e as pernas fraquejaram de vez , é que me recolhi na abrigada da Casa do Povo onde enxuguei o suor da fronte e saboreei uma cerveja entre dois dedos de conversa com um pequeno grupo de jovens arreigados aos valores da terra ancestral. Jovens generosos que ainda acreditam que aquelas aldeias raianas, quase desertas, poderão um dia renascer das próprias cinzas como a fénix da lenda e alcançar uma prosperidade que parece tão longínqua.
Finalmente, sentia a alma apaziguada mas o meu esgrimir de emoções com o espírito do Onésimo não se ficou por aqui. Se ele tivera a coragem de se aventurar até à minha aldeia natal perdida no planalto mirandês, certamente uma das últimas fronteiras de Portugal, também eu, em réplica exemplar, iria visitar a Pico da Pedra, a terra que o viu nascer.
Assim acertado na minha cabeça, na viagem de regresso a Montreal, detive-me um punhado de dias em S. Miguel e, numa pausa dos maravilhosos passeios pela ilha deslumbrante, talvez um dos últimos paraísos deste mundo tão violentado, foi uma enorme alegria para mim deambular, sem pressas, a sorver a história de cada pedra, pelas ruas adormecidas e tranquilas do Pico da Pedra.
Lugar onde a paz parece continuar a reinar como em 1936 quando Luís Dias Martins Carreiro compôs o Hino do Pico da Pedra:
(…)
Vivemos em doce vida!
Numa paz doce e ditosa.
Nesta aldeia tão querida,
Terra linda tão formosa.
(...)


Já agora acrescento, num último retoque, em jeito de florilégio, que na aprazível e polivalente Casa do Povo está instalada uma interessante biblioteca denominada precisamente “Sala de leitura Onésimo Teotónio Almeida”. Prova real de que a aldeia não esqueceu um dos seus mais dilectos filhos.
Após tão frutuosa viagem, tudo se parecia conjugar para um regresso tranquilo a Montreal. Mas (in)felizmente a ambição dos homens é insaciável. Por mais que a tentasse afugentar, não me saía da cabeça a soberba descrição que no livro Onze Prosemas o Onésimo faz da fulgurante aparição do Pico com que se deparou, inesperadamente, numa das suas frequentes viagens aéreas entre as duas margens do seu rio Atlântico(1).
Regalem-se com este suculento naco de prosa, a evocar um realismo mágico de qualidade insuperável que um Borges ou um Garcia Marques não desdenhariam assinar:
O comandante avisa We are presentrly fflying north of Terceira Azores quando eu julgava deveríamos andar a roçar os gelos da Gronelândia e súbito uma força atravessa-me a espinha endireita-me na cadeira e faz-me abrir uma nesga da minha persiana (...)
Nada de ilha e nem sequer mar só nuvens e mais branco e de repente uma alucinação Não é a serra de Santa Bárbara essa não fura assim este algodão espesso mas o Pico ele mesmo ou a ponta dele um cone de azul plantado sobre aquela imensidão de branco sereno e altivo imponente e majestático altaneiro e belo
(...)Apetece-me chamar os vizinhos dar um berro no microfone ABRAM AS PERSIANAS E VEJAM ESTE ESPECTÁCULO mas ninguém mesmo ninguém sabe ou sequer preocupa em saber o que vai lá fora são todos estrangeiros lêem livros em inglês vêm de Londres e vão para New York O que lhes poderá dizer a treta de um triângulo azul escanchado nas nuvens e já me dá vontade de partir a cara a quem na minha cabeça se referiu ao Pico em termos assim tão grosseiros(...)

É de ficar com água na boca, reconheçam lá. Já agora que estava em maré alta de emoções e mesmo de sorte, levando mais longe o meu arrojo, talvez também eu pudesse regalar-me com tão suculenta iguaria do espírito.
Nesta feição, enquanto ainda sobrevoava o arquipélago dos Açores, eu bem esticava o pescoço e espiolhava o espesso manto de nuvens na esperança de que o Pico tivesse forças para irromper por ali acima e mostrar-se em toda a sua magnificiência ao meu olhar deslumbrado.
Mas de nada me valeu o esforço hercúleo. Talvez por só os escolhidos dos deuses poderem usufruir de tal privilégio. Talvez por a minha crença não ser suficientemente forte. As nuvens continuavam espessas, o céu escurecia cada vez mais a pressagiar tempestade. Finalmente, num último golpe de misericórdia, a voz monocórdica do comandante do avião anunciou que iríamos atravessar uma zona de grande turbulência e que deveríamos apertar os cintos de segurança. Adeus gloriosa alucinação do Pico.
Era preciso render-me à evidência. Baixar os braços. Encarar de frente a realidade. E reconhecer que o Onésimo continua imbatível.

(1) Ao fim de vinte e cinco anos de fazer-me ponte sobre o Atlântico, pé-cá, pé-lá, desembarcando em Lisboa, Ponta Delgada, Lages, ou Boston, o oceano tornou-se bem mais estreito e instalou-se num quotidiano de onde se vê sempre a outra margem, com as ilhas de permeio a facilitarem o salto.