segunda-feira, dezembro 22, 2014

MAJAO - Pintora de Sonhos

Parque Jarry, entardece. Sombras começam a derramar-se sobre as águas do lago, diluem os tapetes ondulantes da relva, trepam, até às pontas dos ébanos, pincelam, numa abundância de tons voluptuosos, o céu de porcelana. Os patos começam a singrar, em fila, sem pressas, para os seus refúgios nas profundezas dos altos juncos. Uma serenidade imensa dissipa os últimos sons diurnos que ainda teimam em afrontar o silêncio reinante.
A Majao (Maria João) retira os óculos de sol e fica, por instantes, de olhos sonhadores poisados no espelho de água, talvez, quem sabe?, a sorver a inspiração para uma tela futura que condense a magia do momento.
“Nasci em Faro, sou uma algarvia de gema. Os meus pais eram agricultores, Estudei lá, onde fiz o sétimo ano do ensino liceal. Aos 17 anos, vim com os meus pais para Montreal.“ as palavras fluem cantantes, repassadas de reminiscências.
Fica assim esclarecido o seu fascínio pela água e pelos grandes espaços. Quem nasceu à beira da Ria Formosa guardará vida fora na alma a impressão de tanta formosura que os caprichos da natureza envolveram em deslumbrante sudário de luz.
“É de cristal a noite e de maresia o ar
Na água a brisa baila branda branca e nua”
Assim cantou certo poeta rendido aos seus encantos.
“A nossa vinda para o Canadá deveu-se em grande parte à crise que a agricultura atravessava, os meus pais estavam saturados da situação. Para mim foi uma aventura, desde a chegada que sempre me senti bem em Montreal. Cheguei em Outubro mas tive a sensação de que sempre tinha vivido cá. A neve nunca me afligiu. Antes de ingressar no cégep onde fiz um curso de técnicas administrativas, fiz outros trabalhos como tradutora, acompanhava as pessoas ao Ministério da Imigração, foi uma época muito interessante. Havia, na altura, na comunidade portuguesa um grupo de jovens muito activos. Participei em muitas das suas actividades, nomeadamente no Centro Português de Referência e Promoção Social onde, no meu tempo de estudante, colaborei em vários projectos. Dei também, durantes vários anos, aulas de português na Escola Português do Atlântico.
Em 1975, casei. Quando vim para o Canadá, o meu namorado partira para Angola e quando acabou a comissão de serviço militar e regressou a Portugal, casámos por procuração. Veio ter comigo logo depois, em Setembro de 1975.”
Era o dealbar de uma vida nova, à sua frente rasgavam-se novos mundos repletos de promessas. Nasceram os filhos, um rapaz e duas raparigas. Profissionalmente abriram-se novas portas, os laços que a prendiam, desde os primeiros tempos, ao novo país reforçavam-se gradualmente, numa trama apertada.
“Fui trabalhar para o hospital St-Justine como agente de projectos. Guardo gratas recordações desse tempo”. - O brilho dos olhos não desmente as palavras calorosas. - “Sentia-me completamente realizada"
Entretanto, quando o canto da sereia da integração soava cada dia mais sedutor, por vontade do marido, sempre saudoso do torrão natal, a família regressou, temporariamente, a Portugal.
“Apesar de alguns contratempos, essa experiência também teve aspectos positivos, por exemplo, deu aos meus filhos um contacto mais profundo com a língua e a cultura portuguesas.”
De volta a Montreal, o comboio da vida seguiu o seu curso normal, a readaptação deu-se sem grandes sobressaltos. Os filhos retomaram os estudos, concluíram os seus cursos universitários, são, hoje, um orgulho para a mãe.
Quando tudo parecia encarreirar-se para usufruírem uma vida aprazível e confortável, a tragédia abateu-se sobre aquelas vidas. “Em 2005, a minha vida deu uma volta muito grande. O meu marido faleceu inesperadamente e, passados poucos anos, fiquei sem os meus pais. Entretanto, os meus filhos iniciaram as suas carreiras profissionais e também seguiram o rumo deles.”
Em tais circunstâncias, quando sentem a ameaça das garras aguçadas da solidão, muitas pessoas refugiam-se na sua torre de marfim, traçam ao seu redor intransponíveis muralhas que as protejam das ameaças do mundo exterior, resguardam-se num ilusório refúgio onde se sintam em segurança. Não foi o caso da Majao. Mulher corajosa, aguerrida, enfrentou a situação de frente, partiu em busca de novos caminhos, de novos desafios, guiada por uma sensibilidade que emergiu como um farol no mar encrespado.
“A partir de certo momento senti que precisava de me reencontrar, de transmitir os meus sentimentos através da arte, da pintura. Cedo compreendi que poderia libertar-me da nostalgia que me invadira, através dos pincéis.”
Desde o dia em que teve essa premonição, o mundo ganhou novas cores, a alegria de viver rasgou inesperados rumos. Abundantes mananciais de criatividade despertaram no mais profundo do seu ser. Das suas mãos sedentas de beleza começaram a brotar rios de sonhos que galgaram margens, transbordaram, inundaram e fertilizaram o chão fecundo das suas telas.
“Frequentei um curso de pintura mas ainda hoje continuo a ter aulas, porque é preciso estar sempre actualizado com as novas técnicas que vão surgindo, mas em pouco tempo consegui dominar a arte de pintar, sobretudo da pintura a óleo.”
As exposições surgiram, foram mais um incentivo para continuar a alimentar a sua paixão.
“A minha primeira exposição foi no Ministère du Revenu Federal, foi a primeira porta que se abriu.”
Muitas outras se sucederam, sempre com grande sucesso e acolhimento favorável por parte do público: Centro Comunitário de Anjou, Chez le Portugais, Caixa Portuguesa Desjardins, Centre Sequoia, Festa do LusoPresse, Hôtel Holliday Inn, Casa dos Açores, entre outras. Desde há 4 anos, participa com os seus trabalhos na “Plumes et Pinceaux” uma reputada agenda que, anualmente, reúne vários pintores e poetas do Québec.
“Um dos meus sonhos é fazer uma agenda com trabalhos de pintores e escritores da comunidade portuguesa, acredito que é uma ideia interessante e possível desde que se reúnam os apoios necessários.”
Admiradora de pintores como Pissaro e Monet, após breves incursões exploratórias pelo impressionismo e pela pintura abstracta, a Majao cedo encontrou um estilo próprio onde a natureza tem um lugar predominante. Quando observamos as suas telas, a água está omnipresente. A água e o céu. Amplos espaços azuis por onde vogam os seus sonhos, numa busca incessante da felicidade e da harmonia. Silhuetas de mulheres esbeltas debruçam-se às janelas da vida, perscrutam mundos oníricos que se adivinham par além da linha do horizonte. As cores são intensas, calorosas, contratantes, há murmúrios escaldantes, vozes que sussurram promessas, gritos que se soltam e esvoaçam ao encontro da luz como borboletas sedentas de liberdade.
Mas também encontramos nas suas telas, num banho de luz e sombras, preciosos detalhes que nos fazem mergulhar no fecundo imaginário da pintora repartido entre dois mundos que se conciliam admiravelmente: chaminés mouriscas; ruas calcetadas debruadas por casas brancas e ensolaradas; barcos abandonados nas areias das praias ansiosos por se lançarem nos braços do mar; a apoteose das amendoeiras em flor; veredas sinuosas que rasgam bosques flamejantes; lagos tranquilos debruados por árvores que se erguem, aprumadas, para o infinito e se reflectem nas águas profundas; cumes nevados a tocar o céu; a policromia esplendorosa das flores que inundam as paisagens em metamorfoses inebriantes.
Hoje, a Majao é uma mulher serena, com metas e objectivos bem definidos, compenetrada do seu valor, que pretende deixar a sua marca neste mundo onde a maioria das gentes levam uma vida amorfa, amarradas a destinos sem horizontes.
“Procuro constantemente valorizar-me, crescer, aprofundar os meus conhecimentos e compreender o mundo que me rodeia.”
Mulher também pragmática, tem ideias muito claras e precisas sobre o seu lugar na sociedade de acolhimento, não faz rodeios quando afirma:
“Nós temos que nos adaptar ao país que adoptámos e não podemos manter-nos agarrados aos costumes dos países de origem. Devemos estar reconhecidos porque aqui tivemos a oportunidade de refazer as nossas vidas, mas nunca esquecendo que nós também viemos enriquecer esta sociedade ”.
Fala ainda, com carinho desmedido a embargar-lhe a voz, dos filhos, dos netos, que são a luz dos seus olhos, a energia primordial que alimenta a sua vida nas horas de dúvida e de desalento.
A noite caíra, finalmente. Os lampiões que bordejam o lago já espargem a sua luz, acendem arabescos cintilantes nas águas tranquilas. Uma aragem fresca faz fremir a folhagem das árvores, brinca, traquinas, com os cabelos da minha entrevistada.
Calámo-nos. Deixámos que a noite, com os seus braço ternurentos nos envolvesse, a sugerir uma tela que, em diáfanas tonalidades, nos falasse, num sussurro, dos eternos segredos da vida.

domingo, dezembro 14, 2014

História de Natal

A solidão é das criaturas mais ferozes e impiedosas que surgiram à face da Terra. Desde tempos imemoriais, mais precisamente desde que os homens são homens e se começaram a desencontrar, que o seu terreno de caça tem a vastidão do mundo.
A longa experiência ensinou-lhe que há épocas do ano mais propícias, quando as suas presas estão mais vulneráveis, indefesas, à mercê dos seus apetites insaciáveis, incapazes de resistir ao seu abraço mortífero. Assim acontece na quadra natalícia quando as emoções andam mais assanhadas. Assim aconteceu com aquele homem solitário , de olhar apagado, vergado pela tristeza desde que a companheira de tantos anos partira para outros mundos e o deixara desamparado, incapaz de reatar as pontas da meada da vida truncada.
Naquela véspera do dia de Natal nevara dia e noite, sem repouso. O homem, naufragado no poço sem fundo das suas recordações, encostou a fronte à vidraça e sentiu o frio repassá-lo até ao coração.
Na varanda, a neve, imaculada, já com um palmo bem medido de espessura, tinha a beleza dos postais de boas-festas. Uma beleza que o esmagava e acabrunhava ainda mais.
A solidão, que rondava por ali, quando lobrigou o homem, soltou uma gargalhada satânica e, experiente em tais andanças, adivinhou a fragilidade da presa. Com uma pirueta, esvoaçou ao seu redor, atirou-lhe logo as garras ao pescoço, cravou-lhe a dentuça na alma.
Mas, surpreendentemente, desta vez, o homem não cedeu à primeira investida, um estremecimento de resistência revoltou-lhe o corpo. Naquela noite de todos os prodígios, no mais profundo do seu ser reacendeu-se a última brasa que restava da fogueira que lhe alumiara os passos nos seus descuidados tempos de criança. Para espanto da solidão, o rastilho do pensamento que lhe aflorou a fronte ateou-lhe um sorriso nos lábios que alastrou, traquinas, infantil, pelo rosto sulcado pelos reveses da vida.
“Isto não é de homem ajuizado e da minha idade,” ainda hesitou, relutante em ceder à tentação.
Mas foi de pouca dura a resistência. Logo afastados os pruridos, dono duma energia há tanto tempo arredia, envergou o casaco e as botas da neve, enfiou um gorro cabeça abaixo e saltou para a varanda com a ligeireza e o entusiasmo dos tempos da infância.
Atirou-se à obra, jovial. Em três tempo, o boneco de neve estava de pé, a alva cabeçorra à espera do gorro que o homem tirou da própria cabeça, para o ornamentar com desvelos paternais. As mãos, ágeis, inspiradas por forças desconhecidas, modelaram um nariz proeminente e o arredondado da testa, desenharam uma boca, tornearam os contornos dum manto.
Ao redor, a solidão rangia os dentes, restolhava sobre a neve, com silvos de serpente enfurecica. Mas o homem já nem se apercebia da sua presença. As mãos, a escorrerem poesia, ávidas, continuavam a moldar a sua criação, a aperfeiçoar-lhe os contornos, a burilar os últimos detalhes.
“Estás mesmo engraçado”, disse, dando dois passos atrás , para admirar o resultado do seu labor. O sorriso continuava-lhe pendurado dos lábios, como uma flor.
A solidão continuava a arrastar-se pela neve, enroscou-se num recanto afastado da varanda, perplexa, vencida.
Mas a tarefa do homem ainda não terminara. Os seus passos determinados conduziram-no ao interior do apartamento, à cozinha, donde regressou com algumas rodelas de cenoura que pregou na capa do boneco, numa imitação de botões flamejantes. Duas azeitonas pretas deram vida aos buracos dos olhos, foram o retoque final.
“Agora, sim, estás perfeito. Tenho que te dar um nome. Monico, estás de acordo? “, - Pareceu-lhe que a sua proposta agradara ao boneco. – Ficas, então, o Monico.
Beliscado pelo frio, regressou ao aconchego do apartamento. Através da vidraça que a neve começava a rendilhar com delicadas filigranas de cristal, ficou a admirar a sua obra. O boneco, com o gorro à banda, todo pimpão na sua farpela, parecia sorrir-lhe.
Um esquilo observara toda a cena do conforto do seu refúgio na abrigada dum ébano de braços vergados pelo peso da neve. A princípio, condoera-se com o rosto devastado do homem esborrachado contra a vidraça. Assistira, indignado, ao ataque traiçoeiro da solidão. Dera um guincho de satisfação com a reacção inesperada do homem. Até dera sapatadas de alegria na neve quando o boneco começara a crescer e a ganhar forma. Mas o seu maior contentamento aconteceu quando vira a gulodice das rodelas de cenoura a servir de botões. Feliz por não ter de ir esgatanhar a neve à procura da sua ração de bolotas em qualquer esconderijo improvável, saiu do seu refúgio, de orelhas espetadas e ventas frementes. Mal o homem virou costas e entrou em casa, amaranhou varanda acima, atraído pelo inesperado festim que se lhe oferecia, farto, em tempos de tanta míngua.
Uma golfada de ira alastrou pelo rosto do homem quando viu o esquilo comer o primeiro botão, o seu primeiro impulso foi abrir a porta de rompão e expulsar o intruso a pontapés. Mas foi detido por estranha voz impregnada de paz que crescia no silêncio da noite sagrada.
Após deglutir dois botões, saciado, o esquilo, sem pressa de regressar ao seu refúgio, trepou, agilmente, pela capa do boneco acima e , ternurento, brincalhão, encostou-lhe o focinho ao rosto enregelado. Foi quanto bastou para que o milagre acontecesse.Num repente, numa alquimia redentora ,o boneco de neve ganhou vida, humanizou-se. Estremeceu, piscou os olhos de azeitona, a boca rasgou-se num sorriso bonacheirão a ressumar emoções mal contidas. No silêncio daquela noite repleta duma luminosidade quase diurna, , um rio da ternura ousara correr para os braços do mar profundo da vida, o calor do amor vencera, mais uma vez, para remissão da humanidade, a ferocidade da solidão.
A princípio atónito, mal podendo acreditar no que os seus olhos viam, o homem acabou por derrubar os altos muros que o aprisionavam. Liberto, num impulso irresistível, em harmonia com o mundo, escancarou a bocarra da porta e convidou o boneco de neve a entrar.
“Vem, vamos consoar juntos”, as palavras esvoaçaram como revoada de notas musicais soltas das cordas dum violino a vibrar por ali. “Pomos a cozer duas postas de bacalhau com grelos. Com um bom copo de vinho a acompanhar, vamo-nos regalar.”
Do lado de fora, o esquilo alçou a cauda, radiante, os olhos tremeluziam-lhe como estrelas. MANUEL CARVALHO