segunda-feira, novembro 06, 2006

Ferreira de Castro e o Satúrnia


“Lá vem a Nau Catrineta,
que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.”

É este belo poema do Cancioneiro Português que relembro quando desato a sonhar com viagens. Pela singeleza. Pelo sobrenatural. Pelo maravilhoso que encerra. Por tão exemplarmente reflectir a alma portuguesa.
Para nós, portugueses, viajar está metaforicamente entrelaçado com mar, mistério, aventura, naufrágios, lágrimas, despedidas. É a magia dos cais de embarque e desembarque. É o canto das sereia que fez de nós um povo errante. É o maravilhoso em que foi moldada a nossa idiossincracia imbuída de saudade, tristeza e ânsia de partir à aventura.
Acredito ser este endémico “apelo dos mares” que tão firmemente ancorou o navio Satúrnia no imaginário colectivo da diáspora luso-canadiana e lhe deu a projecção de símbolo da nossa identidade que hoje arvora.
Aqueles homens que naquele já longínquo dia 13 de Maio de 1953, meio atarantados pelo marulhar das ondas bravas contra o molhe do cais, desembarcaram do barco Satúrnia, em Halifax, após viagem sem fim pelos mares profundos das suas angústias e incertezas eram, mais uma vez, a materialização do “apelo” que a Ode marítima do Alvaro de Campos, o conhecido heterónimo do Fernando Pessoa, tão magistralmante condensa:

(...)
Ah, quem sabe, quem sabe,

Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
(...)
Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!

O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
(...)
Chamam por mim as águas.
Chamam por mim os mares.
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar
(...)

Mas não se ficam por aqui os “mistérios” do navio Satúrnia e as suas ligações à cultura e às letras portuguesas. Facto menos conhecido, mas significativo, premonitório ouso afirmar, foi precisamente a bordo do Satúrnia que, em 1939, o escritor português Ferreira de Castro, iniciou a viagem que o haveria de levar aos quatro cantos do mundo. Périplo de cerca de dois anos, na companhia da sua mulher, Elena Muriel , que registou minuciosamente na monumental obra “A Volta ao Mundo, publicada em 1944. Já então era um escritor consagrado, autor de obras mundialmente aclamadas como Os Emigrantes e A Selva que ficarão, para sempre, como marcos da literatura portuguesa da emigração. Estava-se em vésperas do desencadear da segunda grande guerra mundial e a atmosfera tensa que então reinava a bordo do Satúrnia era, com certeza, muito diferente daquela que encontraram os pioneiros portugueses, em 1953. Atente-se na descrição de Ferreira de Castro, já embarcado para a sua grande aventura:

“O «Saturnia» desce, lentamente, o Tejo e, à direita, entre as velas do rio, fulge a Torre de Belém, símbolo do país das grandes viagens. Mais abaixo, a luz vespertina enche de colorido as vivendas do Estoril, enquanto lá ao fundo, na serra de Sintra, irisada bruma dá ao castelo um aspecto fantástico.
Já no Atlântico, contornando a costa portuguesa, e, depois, a espanhola, os passageiros que vêm de Nova York entregam-se aos jornais ingleses, recém-comprados em Lisboa, reunindo-se, à noite, não em frente da orquestra, que toca, solitária, no grande salão, mas junto dos aparelhos de telefonia que espalham notícias do Mundo convulso. E, contudo, estende-se, lá fora, um luar sortílego e um mar calmo, numa noite de maravilha propícia a fazer-nos sonhar com as mais belas coisas da vida. Mas o navio está cheio dessa inquietação que, hoje, tortura os homens, no planeta inteiro.”

Estaria longe de adivinhar Ferreira de Castro que o navio em que acabara de embarcar iria ser palco, anos mais tarde, da mais extraordinária odisseia da diáspora luso-canadiana. Foi mera coincidência, feliz convergência de acontecimentos no universo das probabilidades ou seria o Satúrnia um daqueles locais- frémito de que falava o falecido escritor luso-canadiano Rui Cunha Viana? Locais onde tudo pode acontecer mesmo o que não acontece. Sabe-se lá, estranhas são as voltas que a vida tece.

A lenda do barco em chamas


Numa crónica anterior interrogava-me eu quantas histórias não ficarão por contar. Quantas vidas magníficas ficarão para sempre irremediavelmente ignoradas, cobertas pelo manto espesso do tempo que corre à desfilada. Quanto material, palpitante de vida, estará à espera de saltar para as páginas de romance fremente por ser escrito, com a ansiedade com que o trigo ondulante espera que o transformem em pão.
A saga dos irmãos Corte-Real e das suas viagens ao Novo_Mundo, envoltas em mistério e quantas vezes em fantasia, é mais uma dessas histórias fascinantes. Ao ponto de ter inspirado ao Fernando Pessoa o seu belo poema Só:

A nau de um deles tinha-se perdido
No mar indefinido.
O segundo pediu licença ao Rei
De, na fé e na lei
Da descoberta, ir em procura
Do irmão no mar sem fim e a névoa escura.
Tempo foi.

Nem primeiro nem segundo
Volveu do fim profundo
Do mar ignoto à pátria por quem dera
O enigma que fizera.
Então, o terceiro e El-Rei rogou
Licença de os buscar, e El-Rei negou.
(...)

Que belo romance histórico daria! Os ingredientes estão todos lá. Qualquer dia irei escrever à minha amiga Deana Barroqueira, escritora nascida nos Estados Unidos mas a residir em Portugal e sugerir-lhe este tema. Autora consagrada de romances históricos de aventuras, com certeza irá considerar seriamente a minha sugestão. Então quando lhe revelar a lenda fascinante do “Barco em Chamas” da Île au Héron, sei, adivinho que não poderá resistir ao desejo de deitar mãos à obra.
Esta lenda, pouco lisonjeira para os rudes navegadores portugueses da época, encontrei-a numa página da internet do Centre d'études acadiennes da Université de Moncton e em tradução livre e resumida conta-se assim:
Em 1500, Gaspar Corte-Real, navegador português, chegou a estas paragens e, sob o pretexto de dar uma festa em sua honra, convidou os principais chefes indígenas a subir a bordo da sua caravela. Embriegou intencionalmente os incautos desgraçados que quando acordaram, sobressaltados, já estavam em pleno mar, a caminho de Portugal onde foram vendidos como escravos. Deslumbrado com o sucesso da sua viagem, Gaspar empreendeu nova viagem em 1501 tendo chegado desta vez à Île au Héron, situada na Baie des Chaleurs, no Golf St-Laurent, onde lançou âncora.
Alertados por mais esta incursão, um numeroso grupo de índios, sedentos de vingança, reuniu-se no local e numa noite muito escura atacou a caravela e massacrou toda a equipagem. Somente Corte-Real foi poupado: a sua morte deveria ser mais lenta e dolorosa. Amarrado, foi colocado sobre um rochedo do Héron, à beira-mar. Depois de durante mais de três horas o terem martirizado atrozmente, abandonaram-no à mercê da maré que subia lentamente e que acabou por engolir o infeliz navegador.
No verão de 1502, Miguel Corte-Real , irmão de Gaspar, inquieto pela falta de novas, partiu por sua vez de Lisboa e após longa viagem alcançou a Baie des Chaleurs onde encontrou a caravela abandonada do irmão encalhada em terra.
O barco parecia intacto, não se avistava vivalma. Mas mal se aproximaram, de surpresa, várias canoas rodearam a caravela e, ágeis como macacos, os índios subiram rapidamente a bordo e massacraram parte da tripulação. O capitão e os restantes sobreviventes ao assalto inesperado, foram-se refugiar na proa da embarcação que, sem governo, partiu à deriva, com todos os combatentes a bordo. Subitamente, deflagrou um grande incêndio que alastrou rapidamente pelo barco que, com as velas em chamas, singrava velozmente sobre as águas. Só um dos índios sobreviveu à catástrofe para contar o que aconteceu. Do destino de Miguel Corte-Real e dos seus companheiros não narra a lenda deixando em aberto todas as suposições, entre as quais se inclue o mistério das inscrições talhadas no já célebre Dighton Rock, encontrado séculos mais tarde.
A partir desse fatídico dia, geralmente no mistério da noite, frequentemente em vésperas de tempestade, surgia na baía um barco em chamas que fantasmagoricamente singrava sobre as águas apavorando a população da Île au Héron.

domingo, novembro 05, 2006

Línguas



Língua!Línguas! Quanta tinta já fez correr esta discussão interminável!
Será a língua uma mera ferramenta de comunicação? Será a língua uma parte essencial e imprescindível da nossa identidade? Será a língua a nossa pátria?
Onésimo Teotónio de Almeida escreveu que (...)Cultura é tudo o que é criado pelos seres humanos nas suas relações recíprocas e com a natureza. Assim, a linguagem como criação humana insere-se neste conceito de cultura. Ora, ao falar uma língua, uma pessoa não utiliza apenas um código abstracto de sons. As palavras e as frases referem-se a algo, significam alguma coisa. Não subsistem no vácuo, mas antes como imagem de uma realidade. Quando digo «casa», quem me ouve não ouve apenas um som. Também visualiza na sua mente uma determinada imagem de «casa».(...)
Usando uma linguagem mais poética, Eduardo Bettencourt Pinto, afirmou que (...)A língua é uma espécie de metafísica que transcende os triviais espaços da comunicação diária. Traz consigo a história de um povo, de um tempo, de um homem e de uma mulher cercados pelas inumeráveis fronteiras do Tempo(...)
Na diáspora, para a primeira geração, o confronto crucial entre a língua materna as as línguas do país de acolhimento está magistalmente reflectido no poema Palavras onde me Perco de Avelina da Silveira, uma escritora portuguesa, de origem açoriana, a residir no Ontário:

How I long for the days when words were essential!
Outros tempos quando a palavra encerrava uma certeza
existencial
— coeur et mots, moi même in a fabric of being.

Foi há tanto tempo que parti...
As palavras custam a vir;
como se eu as quisesse articular mas houvesse uma pedra
na garganta.

A voz lusitana escorre sem que dela eu beba,
quase alien, porque já não sonho em português.

Palavras, words, mots perdus...
Labirintos de imagens onde me perco
na ânsia de chegar à outra margem de mim.

J’ai changé le profil du jour
et j’ai perdu mon visage en ce temps,
never again myself between the sea and the maples.

Oh tragédia de imigrar, de partir sem chegar
tecendo na diáspora un être d’ici et de toujours.

Demain será un autre pays, un autre matin,
but I won’t be here. De identidade dispersa
I’ll be searching in yesterday
for the name of a water bird among the snow

Para a segunda e terceira gerações, que, por vezes, já têm como língua materna outra língua que não a portuguesa, este conflito ganha novos contornos e geralmente é resolvido de forma bem mais harmoniosa. Disse Humberta Araújo, uma jornalista de Toronto, que os jovens são naturalmente diferentes na perspectiva de como olham a cultura e a língua portuguesas. Para esta nova geração lusa a língua é um factor importante a ter em conta, mas não é o principal.
Como se depreende, o terreno de jogo já é outro, embora não menos acidentado. Assim o sente o escritor luso-canadiano Paulo da Costa: (...) Nós, seres da diáspora, somos os Centauros do mundo. Impuros. Mesclados. Parcialmente reconhecidos e identificados com o cardume de origem mas simultaneamente apresentando características que nos demarcam e separam desse cardume, somos frequentemente acolhidos com reservas em ambas as orlas. Vistos como seres em limbo, sem tribo nem pátria. Nós que falamos ambas as línguas, nós que nos estendemos de uma orla à outra. Nós as pontes.
Mas voltando à questão da língua, é evidente que para as gerações, de origem portuguesa, já nascidas no Canadá, esta já não é uma questão de vida ou de morte como para a primeira geração. A procura da identidade já passa pela valorização de outras e mais diversificadas pertenças culturais. O domínio de mais do que uma língua poderá mesmo ser um factor de estabilidade e de aquisição de novos valores e consequente enriquecimento pessoal. Pode-se ser orgulhosamente português ou portuguesa a cantar ou a escrever em inglês, ou em francês, como o demonstram a cantora Nelly Furtado ou a escritora Erika de Vasconcelos.
Embora escrito num espaço geográfico e cultural muito diferente do nosso, este poema do poeta Fracisco Niebro, também ele dividido entre duas línguas, a língua portuguesa e a língua mirandesa, encerra uma preciosa lição:

DUES LHÉNGUAS

Andube anhos a filo cula lhéngua trocida pula
oubrigar a salir de l sou camino i tener de
pensar antes de dezir las palabras ciertas:
ua lhéngua naciu-me comi-la an merendas bubi-la an fuontes i rigueiros
outra ye çpoijo dua guerra de muitas batailhas.
Agora tengo dues lhénguas cumigo
i yá nun passo sin dambas a dues.
Stou siempre a trocar de lhéngua mei a miedo
cumo se fura un caso de bigamie.
Ua sabe cousas que l’outra nun conhece
ríen-se ua de l’outra fazendo caçuada i a las bezes anrábian-se
afuora esso dan-se tan bien que sonho nas dues al mesmo tiempo.
Hai dies an que quiero falar ua i sale-me la outra.
Hai dies an que quedo cun ua deilhas tan amarfanhada que se nun la falar arrebento.
Hai dies an que se m’angarabátan ua an la outra
i apuis bótan-se a correr a ber quien chega purmeiro
i muita beç acában por salir ancatrapelhadas
i a mi dá-me la risa.
Hai dies an que quedo todo debelgado culas palabras por dezir
i ancarrapito-me neilhas cumo ua scalada
i deixo-las bolar cumo música
cul miedo que anferrúgen las cuordas que las sáben tocar.
Hai dies an que quiero traduzir ua pa la outra
mas las palabras scónden-se-me
i passo muito tiempo atrás deilhas.
Antre eilhas debíden l miu mundo
i quando pássan la frunteira sínten-se meio perdidas
i fártan-se de roubar palabras ua a l’outra.
Dambas a dues pénsan
mas hai partes de l coraçon an que ua deilhas nun cunsigue antrar
i quando s’achega a la puorta pon l sangre a golsiar de las palabras.
Cada ua fui pursora de l’outra:
l mirandés naciu purmeiro i you afize-me a drumir
arrolhado puls sous sonidos calientes cumo lhúrias
i ansinou l pertués a falar guiando-le la boç;
l pertués naciu-me a la punta de ls dedos
i ansinou l mirandés a screbir porque este nunca tubo scuola para donde ir.
Tengo dues lhénguas cumigo
dues lhénguas que me fazírun
i yá nun passo nien sou you sien dambas a dues.

segunda-feira, setembro 04, 2006


"Recentemente, foi inaugurada uma praça em Montreal em homenagem a Marie-Josèphe Angélique(Entre a av. de l'Hôtel-de-Ville e a estação de métro Champ-de-Mars)"
UMA BELA HISTÓRIA POR CONTAR

Quantas histórias ficam por contar? Quantas vidas magníficas ficarão para sempre irremediavelmente ignoradas, cobertas pelo manto espesso do tempo que corre à desfilada?
E algumas delas, modeladas pela mão de escritor inspirado seriam diamantes a refulgir na galeria das obras imortais.
É essa a grande dor dos ficcionistas. Uma dor que rói até às entranhas, nascida da percepção inconformada de que o mundo invisível é muito mais vasto do que aquele que se nos apresenta ao olhar tantas vezes descuidado.
Como eu gostaria de ter “engenho e arte” para contar a história de uma menina negra nascida na ilha da Madeira e que morreu em Montreal naquele terrível dia 21 Junho de 1734, coberta de opróbrio, às mãos de impiedoso carrasco.
Como se chamaria essa menina? Maria? Provavelmente. Como provavelmente seria filha de escravos negros dos engenhos da cana do açucar da ilha da Madeira. Como viveu naquela ilha maravilhosa? Que sonhos lhe povoavam a mente de criança? Foi uma criança feliz? De que forma recambolesca veio parar à Nova França? Acorrentada no porão dalgum barco negreiro? De forma mais civilizada, na companhia do seu novo amo, o comerciante François Poulin? Que pulsões lhe lavraram o corpo de ébano quando os seus olhos deslumbrados (assustados?) viram as primeiras neves a tombar, tocadas pelo frio e pela solidão? Que desvario a invadiu quando, em língua estranha e hostil lhe trocaram o nome, lhe cravaram, a ferro e fogo, na alma o ferrete da sua nova condição de escrava irremediavelmente perdida nas terras polares?
Tantas interrogações, tantas zonas de penumbra que só a imaginação fértil do criador poderá retocar de luz e trazer à tona do compreensível. Tanto material, palpitante de vida, à espera de saltar para as páginas de romance fremente por ser escrito, com a ansiedade com que o trigo ondulante espera que o transformem em pão.
Que era bela, cheia de vida, atrevida, impetuosa, é claro como a água. Adivinho-lhe o corpo escultural em requebros lascivos. Pressinto-lhe os olhos profundos a lampejar poalhas douradas. Ouço-lhe as risadas em cascata a sugerir promessas mal cumpridas. Respiro-lhe os silêncios misteriosos de selva africana. Sinto-lhe o sangue em alvoroço, seiva farta e generosa a jorrar na aridez das vidas árduas e acabrunhadas. Só assim se compreende que tivesse ateado tantas paixões e destroçado tantos corações desde o escravo César ao branco Claude Thibault que se perdeu por sua causa. Só assim se compreende que tivesse morrido de forma tão trágica. Porque as sociedades atoladas num quotidiano sem histórias não perdoam àqueles que vêm, com a sua rebeldia, agitar as águas miasmáticas e estagnadas.
Em 1730, foi (re)baptizada, na cidade de Montreal, com o nome de Marie-Josèphe Angélique. Nesse dia, a criança que talvez se chamasse Maria, refugiou-se no mundo inacessível do sonho quase cósmico onde manteve acessa, pressinto-o, a chama dum regresso libertador à sua ilha, montada no seu corcel de fogo e luz.
A vida da escrava Marie-Josèphe Angélique, que supostamente na noite fatídica de 10 de Abril de 1734 incendiou meia Montreal, está imortalizada e analisada de forma mais ou menos romanesca numa profusão de obras literárias e documentários nascidos ao longo dos anos. Já faz, inegavelmente, parte integrante do imaginário colectivo e da História do Quebeque.
Principalmente agora que a governadora Geral do Canadá, Michaëlle Jean, num gesto arrojado e corajoso a lançou para as luzes da ribalta ao prestar-lhe uma sentida e significativa homenagem pública e que o Centre d'histoire de Montréal resolveu montar uma exposição que decorrerá de 12 outubro de 2006 até 25 Março de 2007 para além de lhe dedicar uma bem documentada e articulada página web integrada na série Grands Mystères de l’histoire canadienne.
Sim, a história de Marie-Josèphe Angélique está contada e a sua memória finalmente reabilitada. Uma reabilitação tardia mas que é, mesmo assim, um facho de esperança que ilumina o caminho de todos aqueles que aspiram a um mundo humanizado em plena harmonia com a natureza.
Mas está por contar a história mais bela de todas. A mais pura, única como o mais precioso metal que resta no cadinho, criado pelas mãos mágicas de alquimista febril. A história da pequena Maria(?). Desde o dia do seu nascimento até ao trágico dia em que foi (re)baptizada com esses áspero nome de Marie-Josèphe Angélique. A história da criança que se fez mulher por entre destroços e ruinas dum mundo convulso.
As suas cinzas ficaram em Montreal, espalhadas aos quatro ventos pela maldade dos homens mas o seu espírito, luminoso e puro, esse, partiu, acredito, em voo silente, para a sua bela ilha da Madeira. É até muito possível que ainda por lá ande, na forma de esbelta pomba branca, a ruflar sobre as cabeças dos amorosos.

Andorinhas na alma


Em recente estrevista ao Portal da Literatura, dizia Cristina Norton, uma escritora nascida na Argentina mas a viver em Portugal há mais de 30 anos, que, passo a citar, a credito que quem não sabe encontrar a felicidade nas pequenas coisas tampouco a vai encontrar nas grandes.
Nesta certeza, apetece-me continuar a escrever (falar) sobre esses nadas tão grandes que influenciam decisivamente e, estou em crer, que comandam as nossas sinuosas existências.
Aqui estou mais uma vez no parque Jarry, que frequento agora geralmente depois do jantar. Cumprida mais uma longa e retemperadora caminhada, sento-me num dos bancos que bordejam o pequeno lago.
Anoitece serenamente. Respira-se paz, como se o bulício da cidade que ruge tão perto não pudesse chegar aqui, impedido por mãos protectoras. A brisa murmura na folhagem das árvores. Pássaros chilreiam por entre os juncos. Há esquilos a cabriolar sobre os relvados. Há patos a singrar no espelho de água. Há crianças. Muitas crianças. Há mulheres orientais envoltas nos seus véus de seda colorida. Num banco ao lado, um bando de velhos italianos, encanecidos e sulcados pela rispidez da vida, palram como gralhas. Adivinho-lhes os farrapos de recordações, tantas, tantas, a modular as palavras assanhadas.
Ergo os olhos num ritual catártico, em busca também de tempos longínquos e, lá no alto, sobre o lago, na vertigem do seu voo nervoso, as andorinhas riscam a abóbada celeste em arabescos indecifráveis e intermináveis.
Nestes tempos conturbados em que mais uma vez os homens se matam uns aos outros em nome dos seus pequenos deuses, envolve-me o misticismo apazigante e reconciliante da oração “Aos simples” do poeta Guerra Junqueiro:

Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,
E a Lua branca, além, por entre as oliveiras,
Como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!...
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,
Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,
Eu balbuciava a minha infantil oração,
Pedindo ao Deus que está no azul do firmamento
Que mandasse um alívio a cada sofrimento,
Que mandasse uma estrela a cada escuridão.

Acendem-se, feéricos, os candeiros que iluminam o lago. Sombras mais densas começam a alastrar pelos tapetes sem fim de relva. Regressam ao lares os italianos já trôpegos. As andorinhas continuam, lá no alto, a desenhar sonhos na minha alma de criança.

lusocanadiano-Montreal

sábado, setembro 02, 2006


Quentes e boas

Tempos houve em que Portugal respirava ao ritmo duma miríade de pregões que já fazem parte integrante do nosso imaginário colectivo. E feliz é o povo que conseguiu amealhar tamanha riqueza e incorporá-la na sua identidade milenar.
Quem não recorda hoje com saudade e ternura os pregões das peixeiras, dos ardinas, dos cauteleiros e das mais variadas figuras típicas que, na azáfamada do ganha-pão diário, enchiam as ruas de Lisboa e das nossas cidades de sons, cor, luz e vida?
Mas há pregões que resistem à voragem do tempo e do progresso. Quem quer quentes e boas, quentinhas?, ainda hoje apregoam os vendedores ambulantes de castanhas assadas quando ciclicamente chegam as brumas do outono.
Evocação que nos faz rebentar com saudades do cheiro a castanhas a saltar nos assadores de barro, dos novelos espessos de fumo acre que acinzentam ainda mais as tardes friorentas e envolvem num manto brumoso as calçadas tortuosas e polidas. Eterna inspiração para tantos poetas e pintores, esses caçadores de nadas tão grandes.
Há dias, um poeta, - sim, só um poeta pode aventurar-se a tal loucura - instalou uma carripana toda engalanada na Philippe Square, em pleno centre-ville de Montreal, onde vende castanhas assadas com a bravura dum semeador de sonhos. De tempos a tempos, para delícia dos transeuntes, toca uma sineta que ressoa estridentemente pelas esquinas da praça a arrebanhar os crentes para um qualquer ritual catártico. Não sei qual é o seu país de origem nem me interessa sabê-lo, mas pela profundeza do olhar limpo adivinha-se que é homem que viu muitos lugares e muitas almas. E que sabe alguma coisa acerca das fomes que consomem as criaturas transviadas pelas veredas do mundo e da vida.
Por três dólares, comprei um cartucho de castanhas que recolhi na concha das mãos com a emoção de quem segura um recém-nascido. Minto, só agora reconheço que aquilo não era um cartucho de castanhas mas sim um rutilante poema que se escondia aos olhos menos atentos. Três dólares por um poema tão belo. Mas que pechincha!
Pelo sorriso enigmático que lhe arqueou os lábios e lhe acendeu fogueiras nos olhos, desconfio que o vendedor-poeta adivinhava a razão da minha emoção e que me lia descaradamente na alma como num livro aberto.
A avaliar pela fraca afluência de compradores, pode o negócio ser fraco e de pouco futuro, mas enquanto durar, estou certo que o malandro se deve divertir à farta, lá isso deve.

lusocanadiano, montreal