domingo, novembro 05, 2006

Línguas



Língua!Línguas! Quanta tinta já fez correr esta discussão interminável!
Será a língua uma mera ferramenta de comunicação? Será a língua uma parte essencial e imprescindível da nossa identidade? Será a língua a nossa pátria?
Onésimo Teotónio de Almeida escreveu que (...)Cultura é tudo o que é criado pelos seres humanos nas suas relações recíprocas e com a natureza. Assim, a linguagem como criação humana insere-se neste conceito de cultura. Ora, ao falar uma língua, uma pessoa não utiliza apenas um código abstracto de sons. As palavras e as frases referem-se a algo, significam alguma coisa. Não subsistem no vácuo, mas antes como imagem de uma realidade. Quando digo «casa», quem me ouve não ouve apenas um som. Também visualiza na sua mente uma determinada imagem de «casa».(...)
Usando uma linguagem mais poética, Eduardo Bettencourt Pinto, afirmou que (...)A língua é uma espécie de metafísica que transcende os triviais espaços da comunicação diária. Traz consigo a história de um povo, de um tempo, de um homem e de uma mulher cercados pelas inumeráveis fronteiras do Tempo(...)
Na diáspora, para a primeira geração, o confronto crucial entre a língua materna as as línguas do país de acolhimento está magistalmente reflectido no poema Palavras onde me Perco de Avelina da Silveira, uma escritora portuguesa, de origem açoriana, a residir no Ontário:

How I long for the days when words were essential!
Outros tempos quando a palavra encerrava uma certeza
existencial
— coeur et mots, moi même in a fabric of being.

Foi há tanto tempo que parti...
As palavras custam a vir;
como se eu as quisesse articular mas houvesse uma pedra
na garganta.

A voz lusitana escorre sem que dela eu beba,
quase alien, porque já não sonho em português.

Palavras, words, mots perdus...
Labirintos de imagens onde me perco
na ânsia de chegar à outra margem de mim.

J’ai changé le profil du jour
et j’ai perdu mon visage en ce temps,
never again myself between the sea and the maples.

Oh tragédia de imigrar, de partir sem chegar
tecendo na diáspora un être d’ici et de toujours.

Demain será un autre pays, un autre matin,
but I won’t be here. De identidade dispersa
I’ll be searching in yesterday
for the name of a water bird among the snow

Para a segunda e terceira gerações, que, por vezes, já têm como língua materna outra língua que não a portuguesa, este conflito ganha novos contornos e geralmente é resolvido de forma bem mais harmoniosa. Disse Humberta Araújo, uma jornalista de Toronto, que os jovens são naturalmente diferentes na perspectiva de como olham a cultura e a língua portuguesas. Para esta nova geração lusa a língua é um factor importante a ter em conta, mas não é o principal.
Como se depreende, o terreno de jogo já é outro, embora não menos acidentado. Assim o sente o escritor luso-canadiano Paulo da Costa: (...) Nós, seres da diáspora, somos os Centauros do mundo. Impuros. Mesclados. Parcialmente reconhecidos e identificados com o cardume de origem mas simultaneamente apresentando características que nos demarcam e separam desse cardume, somos frequentemente acolhidos com reservas em ambas as orlas. Vistos como seres em limbo, sem tribo nem pátria. Nós que falamos ambas as línguas, nós que nos estendemos de uma orla à outra. Nós as pontes.
Mas voltando à questão da língua, é evidente que para as gerações, de origem portuguesa, já nascidas no Canadá, esta já não é uma questão de vida ou de morte como para a primeira geração. A procura da identidade já passa pela valorização de outras e mais diversificadas pertenças culturais. O domínio de mais do que uma língua poderá mesmo ser um factor de estabilidade e de aquisição de novos valores e consequente enriquecimento pessoal. Pode-se ser orgulhosamente português ou portuguesa a cantar ou a escrever em inglês, ou em francês, como o demonstram a cantora Nelly Furtado ou a escritora Erika de Vasconcelos.
Embora escrito num espaço geográfico e cultural muito diferente do nosso, este poema do poeta Fracisco Niebro, também ele dividido entre duas línguas, a língua portuguesa e a língua mirandesa, encerra uma preciosa lição:

DUES LHÉNGUAS

Andube anhos a filo cula lhéngua trocida pula
oubrigar a salir de l sou camino i tener de
pensar antes de dezir las palabras ciertas:
ua lhéngua naciu-me comi-la an merendas bubi-la an fuontes i rigueiros
outra ye çpoijo dua guerra de muitas batailhas.
Agora tengo dues lhénguas cumigo
i yá nun passo sin dambas a dues.
Stou siempre a trocar de lhéngua mei a miedo
cumo se fura un caso de bigamie.
Ua sabe cousas que l’outra nun conhece
ríen-se ua de l’outra fazendo caçuada i a las bezes anrábian-se
afuora esso dan-se tan bien que sonho nas dues al mesmo tiempo.
Hai dies an que quiero falar ua i sale-me la outra.
Hai dies an que quedo cun ua deilhas tan amarfanhada que se nun la falar arrebento.
Hai dies an que se m’angarabátan ua an la outra
i apuis bótan-se a correr a ber quien chega purmeiro
i muita beç acában por salir ancatrapelhadas
i a mi dá-me la risa.
Hai dies an que quedo todo debelgado culas palabras por dezir
i ancarrapito-me neilhas cumo ua scalada
i deixo-las bolar cumo música
cul miedo que anferrúgen las cuordas que las sáben tocar.
Hai dies an que quiero traduzir ua pa la outra
mas las palabras scónden-se-me
i passo muito tiempo atrás deilhas.
Antre eilhas debíden l miu mundo
i quando pássan la frunteira sínten-se meio perdidas
i fártan-se de roubar palabras ua a l’outra.
Dambas a dues pénsan
mas hai partes de l coraçon an que ua deilhas nun cunsigue antrar
i quando s’achega a la puorta pon l sangre a golsiar de las palabras.
Cada ua fui pursora de l’outra:
l mirandés naciu purmeiro i you afize-me a drumir
arrolhado puls sous sonidos calientes cumo lhúrias
i ansinou l pertués a falar guiando-le la boç;
l pertués naciu-me a la punta de ls dedos
i ansinou l mirandés a screbir porque este nunca tubo scuola para donde ir.
Tengo dues lhénguas cumigo
dues lhénguas que me fazírun
i yá nun passo nien sou you sien dambas a dues.

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