segunda-feira, dezembro 28, 2009

Noite de consoada


A St-Laurent estava quase deserta. Não fossem os enfezados enfeites luminosos, a pingar das árvores despidas e famélicas, que pintalgavam os restos de neve arremeçados contra os bordos dos passeios, nem se acreditaria que era a noite de consoada.
O homem, ainda novo, quarenta anos mal feitos, caminhava com passada mole, sem destino, num remar cansado contra a noite infindável. Vergavam-no o peso das recordações que lhe tinham cravado a dentuça no pescoço e teimavam, raivosas, em não lhe dar tréguas.
As mais antigas, nebulosas mas ainda assim felizes, eram fragmentos cada vez mais esboroados das consoadas da infância em Miranda: a crepitante fogueira acesa pelo entusiasmo da rapaziada, carradas e carradas de lenha queimadas num imenso braseiro que alimentavam noite fora as labaredas esfomeadas de chegar ao céu; a missa do galo, na Sé enregelada, com a ladainha do padre a ressoar pelas imensas naves , tão interminável que até impacientava o seráfico Menino Jesus da Cartolinha como sempre regaladamente instalado na sua guarida; o silente regresso a casa, a paz pousada como pombas brancas nos beirais dos telhados, os passos a ressoar nas pedras lisas e escorregadias da calçada medieval.
Nos primeiros anos em Montreal, lar de imigrantes aturdidos em busca de sentido para a nova vida, eram noites tristes, cheias de saudades mal saradas, de lágrimas furtivas da mãe sufocadas pelos cantos da casa, disfarçadas por sorrisos apagados.
Já homem feito, numa fuga constante às fragilidades coladas para sempre à pele, as noites de consoadas eram passadas, nas mais diversas e inesperadas circunstâncias, ao sabor das suas relações amorosas frívolas, inebriantes, sem cadeias. Quando as coisas corriam para o torto, havia sempre os braços abertos da casa dos pais, as eternas bolas mirandesas, o calor duma alegria mais resignada e o vozeirão sadio do pai repleto de recordações. Era a elas que se agarravam todos com a fúria de náufragos num mar estranho a que nunca pertenceram por inteiro.
Estava, agora mesmo, a ouvir a voz do pai: que rapaz este, recordas-te mulher?, não havia presente de Natal que lhe servisse. Só tinha olhos para os canivetes mirandeses, até lhe saltavam os olhos da cara quando via um nas mãos de alguém. Ainda mal se sustinha nas pernas, parecia um cachorrito a saltar atrás de quem lhe mostrasse o dianho dum canivete. - As palavras rudes ensopavam-se de lágrimas ternurentas. - Nunca vi uma coisa assim, o garoto parecia enbruxado.Como é que se podia dar um brinquedo desses a uma criança! Só se fôssemos doidos..
A mãe, sombra diáfana, sorria, passava-lhe a mão protectora pelos cabelos e, sem que eles se apercebessem, ia-se despedindo aos poucos do filho, do marido, soltas, desde há muito, as amarras ao cais da vida.
O falecimento dos pais quebrara a derradeira ligação umbilical aos prados floridos da infância. O fascínio dos canivetes fora para sempre, assim o acreditara, vencido pelo do mistério das mulheres. Mas com o correr da vida, principalmente nesta época do ano, face a face com as recordações assanhadas, cada vez se apercebia com mais crueza da fraqueza das raízes que o agarravam ao chão que pisava, da sua solidão. Uma solidão imensa, dolorosa, que lhe perfurava as entranhas e abria sulcos profundos de tristeza que nada, nem mesmo as mais envolventes aventuras amorosas, podia sarar.

Quando chegou ao Parc du Portugal, as pernas trémulas recusaram continuar a caminhada sem norte, forçaram-no a sentar-se num banco mesmo à beira do fontanário donde o leão de pedra da bica, seca nesta época do ano, o observava meio intrigado. Mais à frente, o padrão dos descobrimentos, esguio e esbranquiçado, na sua frieza pétrea, era sentinela vigilante, indiferente à sua presença. No telhado do coreto, os pombos encolhiam-se uns contra os outros para se protegerem do frio cortante e também não lhe prestavam atenção. Só o manto de neve que cobria a calçada do parque é que rastejava ao seu encontro para o envolver no seu abraço frígido.
Enregelado, estava disposto a erguer-se, prosseguir o calvário da caminhada, quando, assombrado, pressentiu um vulto sentado a seu lado. Sem pinga de sangue, olhos dilatados de espanto, reconheceu logo a figura inconfundível do Menino Jesus da Cartolinha: rosado, a cartola na cabeça, todo aperaltado na sua farpela de cetim bordado a oiro dos dias de festa, um sorriso fraterno desenhado nos lábios infantis.
A um gesto do Menino, o parque animou-se rapidamente. Um grupo de anjos desceu do céu, instalou-se no coreto com um farto instrumental de harpas, cítaras e flautas que encheram a noite com a magia da sua música celestial. Logo de seguida, dois outros anjos, surgidos do frio, desdobraram alva toalha de linho sobre a neve e serviram em silêncio, uma frugal ceia de consoada composta de pão de centeio, salpicão e presunto.
O Menino, sorridente, retirou da algibeira da casaca um belo canivete de cabo de madeira esculpido que ofereceu ao homem.
- Reconheces? É o canivete dos sonhos da tua infância. Podemos começar a cear.
O homem lentamente, num ritual litúrgico, a saborear cada instante, cortou o pão em longas e suculentas fatias, o salpicão em rodelas finas e sumarentas, o presunto em lascas rosadas, com firmeza e uma sabedoria que só podia nascer do fundo da memória ancestral.
Faltava o vinho mas logo da boca do leão do fontanário começou a jorrar um bica-aberta fresco e capitoso que recolhiam na concha das mãos e sorviam deliciados.
Finda a ceia, os anjos recolheram os restos das vitualhas e os instrumentos musicais e evolaram-se, sem ruído, nas profundezas da noite. O Menino Jesus da Cartolinha, um tudo nada mais corado pelos efeitos do vinho, demorou um último olhar nos olhos do homem e preparou-se para partir também.
- O canivete - balbuciou o homem.
A suave mão do Menino aflorou-lhe o ombro.
- É teu. É o teu presente de Natal.
Quando, instantes depois, com passo firme e decidido, o homem regressou ao seu apartamento, com o canivete no fundo da algibeira, era a criança mais feliz do mundo.

sábado, dezembro 19, 2009

Os milagres ainda existem


Sábado de Agosto em Portugal. Corria uma bela noite de verão. Quente, sem ponta de vento, convidativa a olhar o mundo com os olhos do coração.
Como acontecia frequentemente, eu e a minha mulher decidimos meter-nos no carro e ir até Fátima. Ela porque adora rezar o terço na Capelinha das Aparições e assistir à procissão das velas. Eu porque gosto de respirar a paz daquele mundo de recolhimento e meditação.
Pelo caminho, no pequeno trajecto de cerca de quinze minutos, movido por forças insondáveis, a meio da conversa, evoquei as noites de verão da minha infância distante. Era então um deslumbramento olhar o céu recamado de estrelas, identificar as constelações , a Ursa Maior, a Ursa Menor, até encontrar a Estrela Polar, a estrela da minha predilecção. Lá estava ela sempre presente, luminosa, fiel companheira de navegantes, exploradores e poetas, a indicar o caminho da salvação, dos sonhos e até mesmo da liberdade.
A sua beleza e simbolismo foram cantados, desde sempre, por poetas e trovadores, em rimas de encanto rutilante:

“Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.”

(António Gedeão)


Eu vi a Estrela Polar
Chorando em cima do mar
Eu vi a Estrela Polar
Nas costas de Portugal

(Viniciu de Moraes)

Era em tudo isso que eu pensava, com um travo amargo de melancolia na garganta enquanto olhava o céu coberto pelo espesso manto da poluição tecido pela ambição desmedida dos homens atacados pela epidemia dum consumismo desbragado.
Chegados a Fátima, a minha mulher dirigiu-se para a capelinha enquanto eu
fui tomar um café numa das acolhedoras esplanadas repletas de turistas que desfrutavam regaladamenteo conforto da noite. Retemperado, dirigia-me para o encontro marcado junto ao local das promessas, onde, como sempre, ardia a fé de milhares de velas, quando um inesperado apagão deixou o Santuário mergulhado na mais profunda escuridão.
Surpreendido, ergui os olhos e, num deslumbramento, extasiei-me com um inesperado céu coalhado de estrelas, onde não faltava a bela Estrela Polar da minha infância que me sorria fraternalmente e me sussurrava ao ouvido que o milagre acontecera mais uma vez na solidão daqueles ermos.
É imbuido deste espírito repleto de esperança num amanhã melhor que me chegam as notícias do fracasso da Cimeira de Copenhaga. Os dirigentes políticos mundiais, amordaçados por interesses inconciliáveis e inconfessados, falharam mais uma vez nos seus propósitos de estabelecer regras e uma conduta mais exemplar que salve o mundo da destruição.
Como sempre nas encruzilhas do futuro da humanidade, caberá agora aos simples cidadãos, no seu labutar quotidiano, a missão de empunhar o facho da esperança num mundo diferente. Um mundo mais fraterno, guiado pelo amor, avesso a um materialismo insaciável destruidor da alma humana, capaz de reatar os laços com as nascentes mais puras e primordiais da vida.
Impossível? Talves não, os milagres ainda existem. Principalmente nesta época do ano em que as pessoas estão mais propensas para o pão do espírito.