quarta-feira, dezembro 25, 2013

O presépio mais lindo do mundo

Tarde cinzenta de Dezembro. Um céu de chumbo abatera-se sobre a cidade, esmagava os telhados do casario, num abraço enregelado. A neve, que não cessara de cair nos últimos dias, perdera o seu alvo encanto e cobria as ruas com um manto conspurcado e friorento.
- Este ano não faremos o presépio. – As palavras, inesperadamente soltas da boca da mulher, ficaram a pairar no apartamento como uma revoada de farrapos negros soprados por forte vendaval.
O marido olhou-a, demoradamente. Os olhos azuis dela, estavam apagados, cor de cinza, já não iluminavam, como outrora, o rosto agora entumescido pelo efeito secundário dos medicamentos.
- Porquê? – Era uma pergunta supérflua, desnecessária, a única palavra, trémula, cheia de asperezas, que conseguira vencer o nó cerrado da garganta.
- Não vale a pena. – O fio de voz era quebradiço como cristal, ficou a retinir por ali, serpenteou pelo soalho, refugiou-se, esmorecido, pelos cantos mais obscuros.
Ele voltou a cabeça para que a mulher não se apercebesse da névoa que lhe embaciou o olhar. De manso, foi-se sentar no sofá, a seu lado, e envolveu-a no fogo de um abraço imenso e desesperado. Agora as lágrimas sulcavam-lhe as faces, salgavam-lhe os lábios, desciam até ao queixo que tremia.
- Não chores, mais cedo ou mais tarde todos acabamos por deixar este mundo – consolou-o ela.
Na cabeça do homem ressoavam, como marteladas, as palavras cansadas e compassivas do médico: “A sua mulher já entrou na fase terminal. Irão precisar de muita coragem.”
Procurava, em vão, respostas aceitáveis para as perguntas impiedosas que o perseguiam, sem tréguas, como matilha esfomeada. Como seria apaziguante se um véu de compreensão lhe cobrisse a alma em carne viva e se uma onda de resignação lhe viesse lavar do peito dilacerado aquele sufoco. Mas ainda não soara a hora da aceitação e da reconciliação com a vida, as peças do drama ainda continuavam soltas, desordenadas, sem encontrarem o seu devido lugar na harmonia cósmica.
A tarde findava. Sombras mais espessas avançavam pela janela rasgada a toda a largura da parede, apossavam-se da sala. Os dois vultos entrelaçados, ceifados sobre a vastidão árida do sofá, confundiam-se com o negrume da noite que chegava sem pressas e diluia, pouco a pouco, os contornos dos objectos familiares. Ficou, por ali, interminável, dilacerante, o grito agudo do silêncio.
Inesperadamente, num repente de inconformismo, o homem estremeceu, sacudiu a letargia, ergueu-se ligeiro e sorridente, as palavras romperam num estralejar de centelhas resplandecentes.
- Vamos fazer o presépio, e é para já.
Com uma palmada brusca no interruptor, acendeu a luz que, numa rápida vassourada, expulsou as pesadas sombras que os esmagavam e mais lhe reforçou a determinação que brotara vá-se lá saber em que fonte regeneradora do seu ser. Quando regressou da despensa, sobraçando a caixa com as figuras do presépio, os olhos fulgiam-lhe.
- Vai ficar bonito – disse, como quem esparge um braçado de flores. – Confia no meu talento.
Rapidamente, no recanto do costume, junto à televisão, ergueu a mesita que cobriu com o pano vermelho e aveludado de sempre. Pouco a pouco, meticulosamente, com ternura de prestidigitador, os dedos foram arrancando do ventre fecundo da caixa as figuras de porcelana que emergiam do sono profundo mais belas e brilhantes do que nunca: primeiro o Menino Jesus, despojado de tudo, deitado sobre as palhas douradas; depois o S. José e a Nossa Senhora, em adoração, debruçados sobra a manjedoura, a sonharem um mundo novo; vieram de seguida os reis magos, mortos de cansaço, com as suas oferendas de ouro, incenso e mirra; o anjo, triunfal, de asas abertas, soprava na trompete anunciadora do nascimento da esperança redentora; os pastores, extasiados, guiavam-se pelos sinais anunciadores do prodígio; os animais abeiravam-se, dóceis, conduzidos por um instinto milenar. Os dedos ágeis, cada vez mais inspirados, plantaram, aqui e ali, algumas árvores, ergueram, acolá, um aglomerado de casas fumegantes, espargiram flocos de algodão, a arremedar a pureza da neve, sobre a singeleza do estábulo, o presépio ia crescendo, crepitava de vida, restabelecia a harmonia do universo. Estava, mais uma vez, recriada ali, naquele recanto sofrido da cidade, a cena bíblica que atravessara os séculos e continuava, eterna, a alimentar a esperança dos homens e a dar calor e sentido às existências amarfanhadas pelas cutiladas da vida.
A mulher, atenta, tudo observava, as mãos descarnadas pousadas no regaço, as faces maceradas menos crispadas, os lábios exangues a desabrocharem num ténue sorriso há tanto tempo arredio.
- Está pronto – disse ele, radiante. – Vês como não custou nada a fazer?
- Ainda falta uma coisa muito importante. - Um brilho divertido bailava no olhar dela. – Esqueceste-te da estrela.
- É verdade, que esquecimento o meu – riu-se o marido. – Rebuscou no fundo da caixa, descobriu a peça dourada por entre os enfeites que por lá restavam.
` - Aqui está! - Com desvelos imensos, ergueu-a no topo do estábulo, triunfal, anunciadora da Boa Nova. – Espero que ainda funcione. Quando, após breve hesitação, a estrela começou a piscar alegremente e a irradiar o seu facho de luz que multiplicava constelações pelas paredes, os olhos da mulher tornaram a iluminar, como nos tempos aprazíveis, o rosto agora suavizado pela bem-aventurança daquele instante que detivera, fugazmente, a marcha inexorável do tempo.
- Gostas?
Os olhos azuis, que ele nunca mais esqueceria pela vida fora, continuavam repletos duma ternura sem mácula e a resposta veio num sopro, com a leveza das palavras transcendentais.
- É o presépio mais lindo do mundo.
Na calmaria que se seguiu, vozes reminiscentes pairavam, imponderáveis, por ali, sussurravam histórias encantatórias de afectos desmedidos, acendiam fogueiras purificadoras que, crepitantes, lhes entrelaçavam e fundiam as vidas e os destinos pelos caminhos da eternidade. Do estábulo, os braços abertos para eles num abraço imenso, o Menino Jesus sorria. E até a estrela parecia piscar com mais alegria.
(Publicado no jornal"A Voz de Portugal" e no jornal PÚBLICO-edição do dia de Natal-2013)