quinta-feira, outubro 25, 2012

Os emigrantes desconhecidos

Encontro-o, vezes sem conta, ali no parque, sentado num dos bancos que bordejam o lago povoado de patos selvagens.
Nunca lhe soube o nome, nunca quis saber em que localidade portuguesa nasceu. Para mim, é o emigrante desconhecido e isso me basta.
Esta definição tão sumária assenta como uma luva à sua figura rústica, robusta, talhada na telúrica pedra das serranias portuguesas.
Pela rugas profundas, como sulcos de arado, do rosto, pelas mãos nodosas e possantes, pelo olhar de aço, é fácil adivinhar um homem tenaz, coriáceo, habituado aos trabalhos pesados e ao rigor de climas inóspitos.
«Andei muitos anos na construção, trabalhei no estádio olímpico, estive nas barragens da baía James, aquilo é que era frio de rachar.»
As palavras não deixam transparecer qualquer queixume ou ressentimento. Antes pelo contrário, reflectem o orgulho do homem que nunca baixou a cabeça perante as contrariedades da vida e que tudo soube aceitar estoicamente, de dentes cerrados e coração largo.
Geralmente, é ao entardecer que os nossos passos se cruzam. Eu gosto de olhar o voo caprichoso da meia dúzia de andorinhas, lá no alto, incansáveis na perseguição às nuvens de mosquitos. Ele adora ouvir o trinar dos melros refugiados na folhagem dos carvalhos.
«Na minha terra corre um regato, no meio de muito arvoredo, onde é um regalo ouvir cantar os rouxinóis. Mas olhe que aqui os melros também não cantam mal, não me farto de os ouvir.»
Entre nós, os silêncios são longos e eloquentes. Mas também há dias em que os pensamentos anseiam voar mais soltos, precisam de se transformar em palavras numa alquimia demorada, sem pressas.
«Hoje passei o dia a tratar do quintal. Já tenho aquilo para ali cheio de tomateiros e alfaces. Este ano também semeei umas leiras de feijão de trepar que um vizinho me deu, vamos lá ver o que aquilo dá. Amanhã, talvez plante uns pés de couve. Os québecois chamam-lhe couve portuguesa mas na minha terra sempre lhe ouvi chamar couve galega.» Após tão longo e inabitual discurso, fica a observar a aspereza das mãos castigadas. «Agora que já não trabalho, ajuda-me a passar o tempo.»
Disse-me que morava perto do parque mas já me esqueci do nome da rua. Deve ser num daqueles duplexes que para ali há, com umas hortas nas traseiras que são um mimo. Só mesmo obra dos italianos ou portugueses amorosos da vida, que por lá andam a semear mão-cheias de poesia.
«Na minha terra trabalhei nos campos desde criança, ainda não esqueci o que aprendi. Qualquer dia, passe por lá para eu lhe mostrar a minha obra. Aproveitamos para beber um copo do meu vinho, este ano saiu-me de estalo. Usei pela primeira vez uvas chilenas e não me dei mal.»
Quando está mais predisposto para a conversa, fala-me da casa que mandou construir na aldeia natal, do bom pedaço de terra que tem ao redor, onde plantou um magnífico pomar.
«Plantei lá muitas árvores mas as de que mais gosto são as cerejeiras. Quando lá chego no verão, estão sempre carregadinhas de cerejas encarnadas que é um encanto. O meu irmão é que me trata daquilo, caso contrário estaria tudo ao abandono, a criar urzes para os lobos. Eu e a minha mulher fartamo-nos de trabalhar nas férias, nem sei para quê. Os meus filhos nunca lá vão, não querem saber daquilo para nada. Mesmo que não lho confesse, às vezes acho que têm razão, há sítios mais descansados onde ir passar as férias. Já têm outra forma de ver o mundo, não lhes posso levar a mal.»
É desnecessário perguntar-lhe se está arrependido de ter emigrado. Basta ler-lhe a determinação do olhar para antecipar a óbvia resposta.
«Quando eu vim para cá, Portugal era uma miséria, morríamos de fome. Aqui fui bem recebido, a vida foi por vezes difícil, mas tudo se passou, o trabalho nunca me meteu medo. Hoje tenho quase oitenta anos, a saúde não me falta, criei os filhos que, graças a Deus, têm bons empregos, os netos gostam de mim. Quando as saudades apertam, meto-me num avião e vou até à terra. O que mais posso pedir?»
Há dias em que lhe dá prazer rememorar os primeiros tempos da chegada, quando tudo era desconhecido, nas raias do irreal.
«Não tinha cá ninguém e não percebia patavina das línguas do país. Tenho muito a agradecer a alguns portugueses que já viviam no Bairro Português, se não me tivessem amparado, não sei o que teria sido de mim. Quer saber qual foi o meu primeiro emprego? Nem lhe passa pela cabeça.»
Solta uma gargalhada, inesperada em homem tão circunspecto, que até sobressaltou os patos no lago.< br> «Fui apanhador de minhocas, veja lá! Íamos ao anoitecer, em grupo, para os campos de golfe, com uma lanterna na testa e uma lata atada à perna, e era um apanhar nelas que só visto. Quando conto isto em Portugal, nem acreditam, pensam que é cantiga minha.» Divertido, passa a manápula pelo rosto, acama os cabelos grisalhos mas ainda bastos. «Depois já foi melhor, os meus amigos arranjaram-me trabalho numa padaria de italianos, a amassar pão, tudo o que vinha à rede era peixe.»< br> Ontem, apareceu acompanhado pela mulher. Franzina, azougada, tagarela, um pouco mais nova do que ele, veio, rapidamente, espalhar umas pinceladas mais vivas nas nossas conversas tantas vezes insípidas.
«Este malandro, mal acaba de jantar, sai logo porta fora. Desconfio que anda para aí a arrastar a asa a alguma rapariga.» Dá uma palmada amigável no joelho do marido que sorri, meio encavacado. De pescoço esticado, varre o parque com os olhos inquietos para logo se voltar para mim, pronta para desatar o saco num chorrilho de palavras que se atropelam umas às outras, apressadas por voar em bando.
«O meu marido já lhe deve ter contado a vida dele mas olhe que a minha também não foi fácil, principalmente no princípio. Trabalhava numa fábrica de casacos, a ganhar à peça. Aquilo era todo o santo dia agarrada à máquina, quantos mais forros pregasse mais ganhava, era trabalho de escrava. Costuma-se diz que Deus escreve direito por linhas tortas, é bem verdade. Quando a fábrica fechou fiquei toda aflita mas, passado pouco tempo, encontrei trabalho, nas limpezas em casa de uma senhora judia, foi como se me tivesse saído a sorte grande. Ela gostou tanto de mim que, passados poucos meses, já era eu que tratava de tudo, fiquei a ser a governanta da casa e já tinha outra portuguesa para me ajudar nos trabalhos mais pesados.»
Calou-se, com as mãos cruzadas sobre o peito, para ganhar fôlego. Oportunidade que o marido aproveitou para se desculpar, com um olhar penalisado:
«O senhor deu-lhe trela, agora tem de a ouvir. Esta mulher quando começa a falar não há quem a cale.»
«Lá vai por ti, passas dias seguidos quase sem me dar uma palavra, às vezes parece que lhe meteram uma rolha na boca. O senhor quer ouvir mais esta...»
Na calmaria da tarde, ela continuou o seu tagarelar sem fim, eu fiquei a seguir o voo das andorinhas, o marido de ouvido à escuta do canto dos melros que até pareciam que se esmeravam só para lhe dar prazer.
Sei que aquelas criaturas, ali sentadas ao meu lado, naquele pacato anonimato, nunca estarão debaixo das luzes na ribalta, nunca verão o seu nome escarrapachado nos jornais, morrerão como viveram, fundidos na natureza, com a naturalidade das árvores que cumpriram o seu ciclo, entre muitas, na floresta.
Contudo, quando por vezes me imagino talentoso escultor capaz de talhar uma estátua de homenagem aos emigrantes desconhecidos, é aquele rosto lavrado a formão e aquelas mãos rudes do homem e, frente a frente com ele, o rosto afilado, fremente, vivo, atravessado por coragem inabalável, da mulher, companheira das boas e das más horas, que gostaria de ter engenho para perpetuar no calor da pedra ou da madeira.
(Texto final do livro “Rostos, Olhares e Memória”, publicado em Montreal-2012)