domingo, junho 08, 2008

10 DE JUNHO EM MONTREAL (2008)


Mais um 10 de Junho. Tempo de honrar a Comunidade.
Honra às escolas de língua portuguesa. Honra às associações culturais e recreativas. Honra às instituições religiosas. Honra às instituições financeiras. Honra aos orgãos de comunicação social. Honra aos grupos folclóricos. Honra às filarmónicas. Honra aos nossos estabelecimento de restauração. Honra às gentes anónimas e humildes que, com mãos calejadas, construíram, pedra a pedra, a Comunidade que somos.

Como escreveu Manuel Alegre:
“Com mãos se rasga o mar.
Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas masde mãos.
E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.”

Não obstante um percurso tantas vezes atribulado, com as suas querelas e reconciliações, as suas grandezas e misérias, as suas arrogâncias e humildades, os seus triunfos e fracassos, as suas alegrias e dores, a Comunidade tem sabido, ao longo dos anos, traçar um rumo guiado pelo bom senso e preservar a nossa língua e os nossos valores.
Preservar a língua portuguesa como instrumento de comunicação da nossa cultura e de expressão das nossas emoções mais profundas, componente fundamental da nossa sobrevivência enquanto grupo com uma identidade própria. Preservar os valores seculares mais arreigados que nos definem e identificam como portugueses e lusodescendentes, quase sempre entrelaçados com uma espiritualidade profunda que tem a sua expressão mais significativa e relevante em manifestações de religiosidade popular como as festas do Santo Cristo e do Espírito Santo.

Jorge de Sena, destacado escritor português, que viveu grande parte da sua vida na Califórnia, onde faleceu em 1978, escreveu frequentemente sobre estes temas, numa preocupação constante com o futuro dos filhos.
A propósito da língua, deixou um texto de grande amargura que é uma lição exemplar para todos nós:

“Ouço os meus filhos a falar inglês entre eles. Não os mais pequenos só mas os maiores também e conversando com os mais pequenos. Não nasceram cá, todos cresceram tendo nos ouvido português. Mas em inglês conversam, não apenas serão americanos: dissolveram-se, dissolvem-se num mar que não é deles.
Venham falar-me dos mistérios da poesia, das tradições de uma linguagem, de uma raça, daquilo que se não diz com menos que a experiência de um povo e de uma língua. Bestas. As línguas, que duram séculos e mesmo sobrevivem esquecidas noutras, morrem todos os dias na gaguez daqueles que as herdaram: e são tão imortais que meia dúzia de anos as suprime da boca dissolvida ao peso de outra raça, outra cultura. Tão metafísicas, tão intraduzíveis, que se derretem assim, não nos altos céus, mas na caca quotidiana de outras.”

Desiludido com o materialismo galopante da sociedade americana, escreveu aos filhos uma carta de grande humanismo,onde, num grito do fundo da alma, realça a importância da herança que nos coube e que urge transmitir aos vindouros “em memória do sangue que nos corre nas veias”:

CARTA A MEUS FILHOS...
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo.
(...)
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a. É isto o que mais importa - essa alegria. Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá. Que tudo isto sabereis serenamente, sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença, ardentemente espero. Tanto sangue, tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - não hão-de ser em vão. Confesso que multas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura me submerge inconsolável. (...)
E por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram.