segunda-feira, dezembro 22, 2014

MAJAO - Pintora de Sonhos

Parque Jarry, entardece. Sombras começam a derramar-se sobre as águas do lago, diluem os tapetes ondulantes da relva, trepam, até às pontas dos ébanos, pincelam, numa abundância de tons voluptuosos, o céu de porcelana. Os patos começam a singrar, em fila, sem pressas, para os seus refúgios nas profundezas dos altos juncos. Uma serenidade imensa dissipa os últimos sons diurnos que ainda teimam em afrontar o silêncio reinante.
A Majao (Maria João) retira os óculos de sol e fica, por instantes, de olhos sonhadores poisados no espelho de água, talvez, quem sabe?, a sorver a inspiração para uma tela futura que condense a magia do momento.
“Nasci em Faro, sou uma algarvia de gema. Os meus pais eram agricultores, Estudei lá, onde fiz o sétimo ano do ensino liceal. Aos 17 anos, vim com os meus pais para Montreal.“ as palavras fluem cantantes, repassadas de reminiscências.
Fica assim esclarecido o seu fascínio pela água e pelos grandes espaços. Quem nasceu à beira da Ria Formosa guardará vida fora na alma a impressão de tanta formosura que os caprichos da natureza envolveram em deslumbrante sudário de luz.
“É de cristal a noite e de maresia o ar
Na água a brisa baila branda branca e nua”
Assim cantou certo poeta rendido aos seus encantos.
“A nossa vinda para o Canadá deveu-se em grande parte à crise que a agricultura atravessava, os meus pais estavam saturados da situação. Para mim foi uma aventura, desde a chegada que sempre me senti bem em Montreal. Cheguei em Outubro mas tive a sensação de que sempre tinha vivido cá. A neve nunca me afligiu. Antes de ingressar no cégep onde fiz um curso de técnicas administrativas, fiz outros trabalhos como tradutora, acompanhava as pessoas ao Ministério da Imigração, foi uma época muito interessante. Havia, na altura, na comunidade portuguesa um grupo de jovens muito activos. Participei em muitas das suas actividades, nomeadamente no Centro Português de Referência e Promoção Social onde, no meu tempo de estudante, colaborei em vários projectos. Dei também, durantes vários anos, aulas de português na Escola Português do Atlântico.
Em 1975, casei. Quando vim para o Canadá, o meu namorado partira para Angola e quando acabou a comissão de serviço militar e regressou a Portugal, casámos por procuração. Veio ter comigo logo depois, em Setembro de 1975.”
Era o dealbar de uma vida nova, à sua frente rasgavam-se novos mundos repletos de promessas. Nasceram os filhos, um rapaz e duas raparigas. Profissionalmente abriram-se novas portas, os laços que a prendiam, desde os primeiros tempos, ao novo país reforçavam-se gradualmente, numa trama apertada.
“Fui trabalhar para o hospital St-Justine como agente de projectos. Guardo gratas recordações desse tempo”. - O brilho dos olhos não desmente as palavras calorosas. - “Sentia-me completamente realizada"
Entretanto, quando o canto da sereia da integração soava cada dia mais sedutor, por vontade do marido, sempre saudoso do torrão natal, a família regressou, temporariamente, a Portugal.
“Apesar de alguns contratempos, essa experiência também teve aspectos positivos, por exemplo, deu aos meus filhos um contacto mais profundo com a língua e a cultura portuguesas.”
De volta a Montreal, o comboio da vida seguiu o seu curso normal, a readaptação deu-se sem grandes sobressaltos. Os filhos retomaram os estudos, concluíram os seus cursos universitários, são, hoje, um orgulho para a mãe.
Quando tudo parecia encarreirar-se para usufruírem uma vida aprazível e confortável, a tragédia abateu-se sobre aquelas vidas. “Em 2005, a minha vida deu uma volta muito grande. O meu marido faleceu inesperadamente e, passados poucos anos, fiquei sem os meus pais. Entretanto, os meus filhos iniciaram as suas carreiras profissionais e também seguiram o rumo deles.”
Em tais circunstâncias, quando sentem a ameaça das garras aguçadas da solidão, muitas pessoas refugiam-se na sua torre de marfim, traçam ao seu redor intransponíveis muralhas que as protejam das ameaças do mundo exterior, resguardam-se num ilusório refúgio onde se sintam em segurança. Não foi o caso da Majao. Mulher corajosa, aguerrida, enfrentou a situação de frente, partiu em busca de novos caminhos, de novos desafios, guiada por uma sensibilidade que emergiu como um farol no mar encrespado.
“A partir de certo momento senti que precisava de me reencontrar, de transmitir os meus sentimentos através da arte, da pintura. Cedo compreendi que poderia libertar-me da nostalgia que me invadira, através dos pincéis.”
Desde o dia em que teve essa premonição, o mundo ganhou novas cores, a alegria de viver rasgou inesperados rumos. Abundantes mananciais de criatividade despertaram no mais profundo do seu ser. Das suas mãos sedentas de beleza começaram a brotar rios de sonhos que galgaram margens, transbordaram, inundaram e fertilizaram o chão fecundo das suas telas.
“Frequentei um curso de pintura mas ainda hoje continuo a ter aulas, porque é preciso estar sempre actualizado com as novas técnicas que vão surgindo, mas em pouco tempo consegui dominar a arte de pintar, sobretudo da pintura a óleo.”
As exposições surgiram, foram mais um incentivo para continuar a alimentar a sua paixão.
“A minha primeira exposição foi no Ministère du Revenu Federal, foi a primeira porta que se abriu.”
Muitas outras se sucederam, sempre com grande sucesso e acolhimento favorável por parte do público: Centro Comunitário de Anjou, Chez le Portugais, Caixa Portuguesa Desjardins, Centre Sequoia, Festa do LusoPresse, Hôtel Holliday Inn, Casa dos Açores, entre outras. Desde há 4 anos, participa com os seus trabalhos na “Plumes et Pinceaux” uma reputada agenda que, anualmente, reúne vários pintores e poetas do Québec.
“Um dos meus sonhos é fazer uma agenda com trabalhos de pintores e escritores da comunidade portuguesa, acredito que é uma ideia interessante e possível desde que se reúnam os apoios necessários.”
Admiradora de pintores como Pissaro e Monet, após breves incursões exploratórias pelo impressionismo e pela pintura abstracta, a Majao cedo encontrou um estilo próprio onde a natureza tem um lugar predominante. Quando observamos as suas telas, a água está omnipresente. A água e o céu. Amplos espaços azuis por onde vogam os seus sonhos, numa busca incessante da felicidade e da harmonia. Silhuetas de mulheres esbeltas debruçam-se às janelas da vida, perscrutam mundos oníricos que se adivinham par além da linha do horizonte. As cores são intensas, calorosas, contratantes, há murmúrios escaldantes, vozes que sussurram promessas, gritos que se soltam e esvoaçam ao encontro da luz como borboletas sedentas de liberdade.
Mas também encontramos nas suas telas, num banho de luz e sombras, preciosos detalhes que nos fazem mergulhar no fecundo imaginário da pintora repartido entre dois mundos que se conciliam admiravelmente: chaminés mouriscas; ruas calcetadas debruadas por casas brancas e ensolaradas; barcos abandonados nas areias das praias ansiosos por se lançarem nos braços do mar; a apoteose das amendoeiras em flor; veredas sinuosas que rasgam bosques flamejantes; lagos tranquilos debruados por árvores que se erguem, aprumadas, para o infinito e se reflectem nas águas profundas; cumes nevados a tocar o céu; a policromia esplendorosa das flores que inundam as paisagens em metamorfoses inebriantes.
Hoje, a Majao é uma mulher serena, com metas e objectivos bem definidos, compenetrada do seu valor, que pretende deixar a sua marca neste mundo onde a maioria das gentes levam uma vida amorfa, amarradas a destinos sem horizontes.
“Procuro constantemente valorizar-me, crescer, aprofundar os meus conhecimentos e compreender o mundo que me rodeia.”
Mulher também pragmática, tem ideias muito claras e precisas sobre o seu lugar na sociedade de acolhimento, não faz rodeios quando afirma:
“Nós temos que nos adaptar ao país que adoptámos e não podemos manter-nos agarrados aos costumes dos países de origem. Devemos estar reconhecidos porque aqui tivemos a oportunidade de refazer as nossas vidas, mas nunca esquecendo que nós também viemos enriquecer esta sociedade ”.
Fala ainda, com carinho desmedido a embargar-lhe a voz, dos filhos, dos netos, que são a luz dos seus olhos, a energia primordial que alimenta a sua vida nas horas de dúvida e de desalento.
A noite caíra, finalmente. Os lampiões que bordejam o lago já espargem a sua luz, acendem arabescos cintilantes nas águas tranquilas. Uma aragem fresca faz fremir a folhagem das árvores, brinca, traquinas, com os cabelos da minha entrevistada.
Calámo-nos. Deixámos que a noite, com os seus braço ternurentos nos envolvesse, a sugerir uma tela que, em diáfanas tonalidades, nos falasse, num sussurro, dos eternos segredos da vida.

domingo, dezembro 14, 2014

História de Natal

A solidão é das criaturas mais ferozes e impiedosas que surgiram à face da Terra. Desde tempos imemoriais, mais precisamente desde que os homens são homens e se começaram a desencontrar, que o seu terreno de caça tem a vastidão do mundo.
A longa experiência ensinou-lhe que há épocas do ano mais propícias, quando as suas presas estão mais vulneráveis, indefesas, à mercê dos seus apetites insaciáveis, incapazes de resistir ao seu abraço mortífero. Assim acontece na quadra natalícia quando as emoções andam mais assanhadas. Assim aconteceu com aquele homem solitário , de olhar apagado, vergado pela tristeza desde que a companheira de tantos anos partira para outros mundos e o deixara desamparado, incapaz de reatar as pontas da meada da vida truncada.
Naquela véspera do dia de Natal nevara dia e noite, sem repouso. O homem, naufragado no poço sem fundo das suas recordações, encostou a fronte à vidraça e sentiu o frio repassá-lo até ao coração.
Na varanda, a neve, imaculada, já com um palmo bem medido de espessura, tinha a beleza dos postais de boas-festas. Uma beleza que o esmagava e acabrunhava ainda mais.
A solidão, que rondava por ali, quando lobrigou o homem, soltou uma gargalhada satânica e, experiente em tais andanças, adivinhou a fragilidade da presa. Com uma pirueta, esvoaçou ao seu redor, atirou-lhe logo as garras ao pescoço, cravou-lhe a dentuça na alma.
Mas, surpreendentemente, desta vez, o homem não cedeu à primeira investida, um estremecimento de resistência revoltou-lhe o corpo. Naquela noite de todos os prodígios, no mais profundo do seu ser reacendeu-se a última brasa que restava da fogueira que lhe alumiara os passos nos seus descuidados tempos de criança. Para espanto da solidão, o rastilho do pensamento que lhe aflorou a fronte ateou-lhe um sorriso nos lábios que alastrou, traquinas, infantil, pelo rosto sulcado pelos reveses da vida.
“Isto não é de homem ajuizado e da minha idade,” ainda hesitou, relutante em ceder à tentação.
Mas foi de pouca dura a resistência. Logo afastados os pruridos, dono duma energia há tanto tempo arredia, envergou o casaco e as botas da neve, enfiou um gorro cabeça abaixo e saltou para a varanda com a ligeireza e o entusiasmo dos tempos da infância.
Atirou-se à obra, jovial. Em três tempo, o boneco de neve estava de pé, a alva cabeçorra à espera do gorro que o homem tirou da própria cabeça, para o ornamentar com desvelos paternais. As mãos, ágeis, inspiradas por forças desconhecidas, modelaram um nariz proeminente e o arredondado da testa, desenharam uma boca, tornearam os contornos dum manto.
Ao redor, a solidão rangia os dentes, restolhava sobre a neve, com silvos de serpente enfurecica. Mas o homem já nem se apercebia da sua presença. As mãos, a escorrerem poesia, ávidas, continuavam a moldar a sua criação, a aperfeiçoar-lhe os contornos, a burilar os últimos detalhes.
“Estás mesmo engraçado”, disse, dando dois passos atrás , para admirar o resultado do seu labor. O sorriso continuava-lhe pendurado dos lábios, como uma flor.
A solidão continuava a arrastar-se pela neve, enroscou-se num recanto afastado da varanda, perplexa, vencida.
Mas a tarefa do homem ainda não terminara. Os seus passos determinados conduziram-no ao interior do apartamento, à cozinha, donde regressou com algumas rodelas de cenoura que pregou na capa do boneco, numa imitação de botões flamejantes. Duas azeitonas pretas deram vida aos buracos dos olhos, foram o retoque final.
“Agora, sim, estás perfeito. Tenho que te dar um nome. Monico, estás de acordo? “, - Pareceu-lhe que a sua proposta agradara ao boneco. – Ficas, então, o Monico.
Beliscado pelo frio, regressou ao aconchego do apartamento. Através da vidraça que a neve começava a rendilhar com delicadas filigranas de cristal, ficou a admirar a sua obra. O boneco, com o gorro à banda, todo pimpão na sua farpela, parecia sorrir-lhe.
Um esquilo observara toda a cena do conforto do seu refúgio na abrigada dum ébano de braços vergados pelo peso da neve. A princípio, condoera-se com o rosto devastado do homem esborrachado contra a vidraça. Assistira, indignado, ao ataque traiçoeiro da solidão. Dera um guincho de satisfação com a reacção inesperada do homem. Até dera sapatadas de alegria na neve quando o boneco começara a crescer e a ganhar forma. Mas o seu maior contentamento aconteceu quando vira a gulodice das rodelas de cenoura a servir de botões. Feliz por não ter de ir esgatanhar a neve à procura da sua ração de bolotas em qualquer esconderijo improvável, saiu do seu refúgio, de orelhas espetadas e ventas frementes. Mal o homem virou costas e entrou em casa, amaranhou varanda acima, atraído pelo inesperado festim que se lhe oferecia, farto, em tempos de tanta míngua.
Uma golfada de ira alastrou pelo rosto do homem quando viu o esquilo comer o primeiro botão, o seu primeiro impulso foi abrir a porta de rompão e expulsar o intruso a pontapés. Mas foi detido por estranha voz impregnada de paz que crescia no silêncio da noite sagrada.
Após deglutir dois botões, saciado, o esquilo, sem pressa de regressar ao seu refúgio, trepou, agilmente, pela capa do boneco acima e , ternurento, brincalhão, encostou-lhe o focinho ao rosto enregelado. Foi quanto bastou para que o milagre acontecesse.Num repente, numa alquimia redentora ,o boneco de neve ganhou vida, humanizou-se. Estremeceu, piscou os olhos de azeitona, a boca rasgou-se num sorriso bonacheirão a ressumar emoções mal contidas. No silêncio daquela noite repleta duma luminosidade quase diurna, , um rio da ternura ousara correr para os braços do mar profundo da vida, o calor do amor vencera, mais uma vez, para remissão da humanidade, a ferocidade da solidão.
A princípio atónito, mal podendo acreditar no que os seus olhos viam, o homem acabou por derrubar os altos muros que o aprisionavam. Liberto, num impulso irresistível, em harmonia com o mundo, escancarou a bocarra da porta e convidou o boneco de neve a entrar.
“Vem, vamos consoar juntos”, as palavras esvoaçaram como revoada de notas musicais soltas das cordas dum violino a vibrar por ali. “Pomos a cozer duas postas de bacalhau com grelos. Com um bom copo de vinho a acompanhar, vamo-nos regalar.”
Do lado de fora, o esquilo alçou a cauda, radiante, os olhos tremeluziam-lhe como estrelas. MANUEL CARVALHO

quarta-feira, dezembro 25, 2013

O presépio mais lindo do mundo

Tarde cinzenta de Dezembro. Um céu de chumbo abatera-se sobre a cidade, esmagava os telhados do casario, num abraço enregelado. A neve, que não cessara de cair nos últimos dias, perdera o seu alvo encanto e cobria as ruas com um manto conspurcado e friorento.
- Este ano não faremos o presépio. – As palavras, inesperadamente soltas da boca da mulher, ficaram a pairar no apartamento como uma revoada de farrapos negros soprados por forte vendaval.
O marido olhou-a, demoradamente. Os olhos azuis dela, estavam apagados, cor de cinza, já não iluminavam, como outrora, o rosto agora entumescido pelo efeito secundário dos medicamentos.
- Porquê? – Era uma pergunta supérflua, desnecessária, a única palavra, trémula, cheia de asperezas, que conseguira vencer o nó cerrado da garganta.
- Não vale a pena. – O fio de voz era quebradiço como cristal, ficou a retinir por ali, serpenteou pelo soalho, refugiou-se, esmorecido, pelos cantos mais obscuros.
Ele voltou a cabeça para que a mulher não se apercebesse da névoa que lhe embaciou o olhar. De manso, foi-se sentar no sofá, a seu lado, e envolveu-a no fogo de um abraço imenso e desesperado. Agora as lágrimas sulcavam-lhe as faces, salgavam-lhe os lábios, desciam até ao queixo que tremia.
- Não chores, mais cedo ou mais tarde todos acabamos por deixar este mundo – consolou-o ela.
Na cabeça do homem ressoavam, como marteladas, as palavras cansadas e compassivas do médico: “A sua mulher já entrou na fase terminal. Irão precisar de muita coragem.”
Procurava, em vão, respostas aceitáveis para as perguntas impiedosas que o perseguiam, sem tréguas, como matilha esfomeada. Como seria apaziguante se um véu de compreensão lhe cobrisse a alma em carne viva e se uma onda de resignação lhe viesse lavar do peito dilacerado aquele sufoco. Mas ainda não soara a hora da aceitação e da reconciliação com a vida, as peças do drama ainda continuavam soltas, desordenadas, sem encontrarem o seu devido lugar na harmonia cósmica.
A tarde findava. Sombras mais espessas avançavam pela janela rasgada a toda a largura da parede, apossavam-se da sala. Os dois vultos entrelaçados, ceifados sobre a vastidão árida do sofá, confundiam-se com o negrume da noite que chegava sem pressas e diluia, pouco a pouco, os contornos dos objectos familiares. Ficou, por ali, interminável, dilacerante, o grito agudo do silêncio.
Inesperadamente, num repente de inconformismo, o homem estremeceu, sacudiu a letargia, ergueu-se ligeiro e sorridente, as palavras romperam num estralejar de centelhas resplandecentes.
- Vamos fazer o presépio, e é para já.
Com uma palmada brusca no interruptor, acendeu a luz que, numa rápida vassourada, expulsou as pesadas sombras que os esmagavam e mais lhe reforçou a determinação que brotara vá-se lá saber em que fonte regeneradora do seu ser. Quando regressou da despensa, sobraçando a caixa com as figuras do presépio, os olhos fulgiam-lhe.
- Vai ficar bonito – disse, como quem esparge um braçado de flores. – Confia no meu talento.
Rapidamente, no recanto do costume, junto à televisão, ergueu a mesita que cobriu com o pano vermelho e aveludado de sempre. Pouco a pouco, meticulosamente, com ternura de prestidigitador, os dedos foram arrancando do ventre fecundo da caixa as figuras de porcelana que emergiam do sono profundo mais belas e brilhantes do que nunca: primeiro o Menino Jesus, despojado de tudo, deitado sobre as palhas douradas; depois o S. José e a Nossa Senhora, em adoração, debruçados sobra a manjedoura, a sonharem um mundo novo; vieram de seguida os reis magos, mortos de cansaço, com as suas oferendas de ouro, incenso e mirra; o anjo, triunfal, de asas abertas, soprava na trompete anunciadora do nascimento da esperança redentora; os pastores, extasiados, guiavam-se pelos sinais anunciadores do prodígio; os animais abeiravam-se, dóceis, conduzidos por um instinto milenar. Os dedos ágeis, cada vez mais inspirados, plantaram, aqui e ali, algumas árvores, ergueram, acolá, um aglomerado de casas fumegantes, espargiram flocos de algodão, a arremedar a pureza da neve, sobre a singeleza do estábulo, o presépio ia crescendo, crepitava de vida, restabelecia a harmonia do universo. Estava, mais uma vez, recriada ali, naquele recanto sofrido da cidade, a cena bíblica que atravessara os séculos e continuava, eterna, a alimentar a esperança dos homens e a dar calor e sentido às existências amarfanhadas pelas cutiladas da vida.
A mulher, atenta, tudo observava, as mãos descarnadas pousadas no regaço, as faces maceradas menos crispadas, os lábios exangues a desabrocharem num ténue sorriso há tanto tempo arredio.
- Está pronto – disse ele, radiante. – Vês como não custou nada a fazer?
- Ainda falta uma coisa muito importante. - Um brilho divertido bailava no olhar dela. – Esqueceste-te da estrela.
- É verdade, que esquecimento o meu – riu-se o marido. – Rebuscou no fundo da caixa, descobriu a peça dourada por entre os enfeites que por lá restavam.
` - Aqui está! - Com desvelos imensos, ergueu-a no topo do estábulo, triunfal, anunciadora da Boa Nova. – Espero que ainda funcione. Quando, após breve hesitação, a estrela começou a piscar alegremente e a irradiar o seu facho de luz que multiplicava constelações pelas paredes, os olhos da mulher tornaram a iluminar, como nos tempos aprazíveis, o rosto agora suavizado pela bem-aventurança daquele instante que detivera, fugazmente, a marcha inexorável do tempo.
- Gostas?
Os olhos azuis, que ele nunca mais esqueceria pela vida fora, continuavam repletos duma ternura sem mácula e a resposta veio num sopro, com a leveza das palavras transcendentais.
- É o presépio mais lindo do mundo.
Na calmaria que se seguiu, vozes reminiscentes pairavam, imponderáveis, por ali, sussurravam histórias encantatórias de afectos desmedidos, acendiam fogueiras purificadoras que, crepitantes, lhes entrelaçavam e fundiam as vidas e os destinos pelos caminhos da eternidade. Do estábulo, os braços abertos para eles num abraço imenso, o Menino Jesus sorria. E até a estrela parecia piscar com mais alegria.
(Publicado no jornal"A Voz de Portugal" e no jornal PÚBLICO-edição do dia de Natal-2013)

segunda-feira, dezembro 31, 2012

HOMENS DESTES NUNCA MORREM

Disseram-me que o José das Neves Rodrigues faleceu.
Não acredito. Homens destes nunca morrem. Andem lá por onde andarem, ficarão para sempre vivos na memória e no imaginário colectivo dos povos que tiveram a benção de os acolher no seu regaço.
Porque o Neves Rodrigues pertencia àquela estirpe de homens visionários que têm o condão de espargir braçados de sonhos ao seu redor, como quem semeia amanhãs radiosos. Sonhos do tamanho do mundo, raiados com as cores mais surpreendentes que a vida pode procriar.
Tipógrafo de profissão, anarquista convicto, chegou ao Canadá em 1960 e nas décadas de sessenta e setenta, em tudo o que de relevante acontecesse na Comunidade, inevitavelmente, logo vinha à baila o nome dele. Na fundação da Caixa Portuguesa, da Casa dos Portugueses de Montreal, do Movimento Democrático, do Centro de Referência; na criação e publicação de boletins, jornais e revistas como o Luso-Canadiano, a Tribuna Portuguesa, o Movimento, o Portinhola e a Caravela; nas gloriosas jornadas de luta antifascista; em projectos concretizados ou que, mirabolantes, nunca foram avante, como a criação de livrarias, de arquivos documentais, de bibliotecas ou de centros culturais. Sempre de mãos estendidas e abertas, mente fervilhante, alma desmedida e uma sede insaciável de fraternidade e de justiça social.
Foi, decerto, a pensar em sonhadores destes que o poeta António Gedeão burilou essa filigrana incomparável que é a Pedra Filosofal.
(...)
Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida,
Que quando um homem sonha
O mundo pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança
(...)
Infatigável cavaleiro andante da utopia, quantas vezes incompreendido e ostracizado, quando não escarnecido, nunca deixou de semear, prodigamente, sonhos e quimeras pelos campos floridos do porvir, por vezes em batalhas inglórias contra moinhos de vento, quase sempre com sacrifício dos seus interesses pessoais e familiares.
Conheci-o, casualmente, numa viagem de avião para Lisboa. Foi uma fabulosa noite em branco, num fascinante cavaquear sem tréguas que deveria ter deixado os nervos em franja aos passageiros mais próximos, ansiosos por um pouco de repouso antes de poisarem no torrão natal.
Já sobrevoávamos Lisboa que, esplendorosa, desabrochava na manhã luminosa, quando, a meio da cavalgada da conversa, quando eu menos esperava, sussurou-me ao ouvido:
“Vou-lhe contar um segredo, mas não me denuncie. Levo aqui comigo as cinzas da minha mulher, para sepultar em Portugal.” - Apesar da estonteante revelação, sorria, quase divertido - “Foi a última vontade dela. Não sei se é legal mas também nunca liguei muito a leis.”
Nunca mais pude esquecer a expressão faiscante daqueles olhos claros como a água. Só muito mais tarde, em circunstâncias de que agora não me recordo, é que eu soube quem ele era. E só então é que compreendi que, possivelmente, aquela teria sido uma das últimas acções conspirativas do indomável anarquista.
Como uma obsessão, que nunca deixou de me perseguir, sempre tive o anseio de contar a história daquela noite extraordinária que o acaso nos proporcionou passarmos juntos. A oportunidade parecia, finalmente, querer concretizar-se com a realização de uma entrevista para o livro “Rostos, Olhares e Memória” mas, infelizmente, fui dissuadido do meu intento por informação de que já se encontrava muito debilitado e incapaz de suportar tamanho esforço.
Mas que viagem de assombros aquela! Passados tantos anos, ainda me parece que o estou a ouvir, as palavras a soltarem-se, frementes e triunfais, com o fervor dos crentes:
“Acredito que um dia virá em os homens serão todos iguais e que a Terra, sem amos nem escravos, será, finalmente, um paraíso onde a felicidade reinará para sempre.”
Que mais adequadas e mais belas palavras poderia encontrar para dar esperançosas boas vindas ao ano de 2013? E ainda há quem diga que o Neves Rodrigues morreu! Pura ilusão, as UTOPIAS são imortais.

quinta-feira, outubro 25, 2012

Os emigrantes desconhecidos

Encontro-o, vezes sem conta, ali no parque, sentado num dos bancos que bordejam o lago povoado de patos selvagens.
Nunca lhe soube o nome, nunca quis saber em que localidade portuguesa nasceu. Para mim, é o emigrante desconhecido e isso me basta.
Esta definição tão sumária assenta como uma luva à sua figura rústica, robusta, talhada na telúrica pedra das serranias portuguesas.
Pela rugas profundas, como sulcos de arado, do rosto, pelas mãos nodosas e possantes, pelo olhar de aço, é fácil adivinhar um homem tenaz, coriáceo, habituado aos trabalhos pesados e ao rigor de climas inóspitos.
«Andei muitos anos na construção, trabalhei no estádio olímpico, estive nas barragens da baía James, aquilo é que era frio de rachar.»
As palavras não deixam transparecer qualquer queixume ou ressentimento. Antes pelo contrário, reflectem o orgulho do homem que nunca baixou a cabeça perante as contrariedades da vida e que tudo soube aceitar estoicamente, de dentes cerrados e coração largo.
Geralmente, é ao entardecer que os nossos passos se cruzam. Eu gosto de olhar o voo caprichoso da meia dúzia de andorinhas, lá no alto, incansáveis na perseguição às nuvens de mosquitos. Ele adora ouvir o trinar dos melros refugiados na folhagem dos carvalhos.
«Na minha terra corre um regato, no meio de muito arvoredo, onde é um regalo ouvir cantar os rouxinóis. Mas olhe que aqui os melros também não cantam mal, não me farto de os ouvir.»
Entre nós, os silêncios são longos e eloquentes. Mas também há dias em que os pensamentos anseiam voar mais soltos, precisam de se transformar em palavras numa alquimia demorada, sem pressas.
«Hoje passei o dia a tratar do quintal. Já tenho aquilo para ali cheio de tomateiros e alfaces. Este ano também semeei umas leiras de feijão de trepar que um vizinho me deu, vamos lá ver o que aquilo dá. Amanhã, talvez plante uns pés de couve. Os québecois chamam-lhe couve portuguesa mas na minha terra sempre lhe ouvi chamar couve galega.» Após tão longo e inabitual discurso, fica a observar a aspereza das mãos castigadas. «Agora que já não trabalho, ajuda-me a passar o tempo.»
Disse-me que morava perto do parque mas já me esqueci do nome da rua. Deve ser num daqueles duplexes que para ali há, com umas hortas nas traseiras que são um mimo. Só mesmo obra dos italianos ou portugueses amorosos da vida, que por lá andam a semear mão-cheias de poesia.
«Na minha terra trabalhei nos campos desde criança, ainda não esqueci o que aprendi. Qualquer dia, passe por lá para eu lhe mostrar a minha obra. Aproveitamos para beber um copo do meu vinho, este ano saiu-me de estalo. Usei pela primeira vez uvas chilenas e não me dei mal.»
Quando está mais predisposto para a conversa, fala-me da casa que mandou construir na aldeia natal, do bom pedaço de terra que tem ao redor, onde plantou um magnífico pomar.
«Plantei lá muitas árvores mas as de que mais gosto são as cerejeiras. Quando lá chego no verão, estão sempre carregadinhas de cerejas encarnadas que é um encanto. O meu irmão é que me trata daquilo, caso contrário estaria tudo ao abandono, a criar urzes para os lobos. Eu e a minha mulher fartamo-nos de trabalhar nas férias, nem sei para quê. Os meus filhos nunca lá vão, não querem saber daquilo para nada. Mesmo que não lho confesse, às vezes acho que têm razão, há sítios mais descansados onde ir passar as férias. Já têm outra forma de ver o mundo, não lhes posso levar a mal.»
É desnecessário perguntar-lhe se está arrependido de ter emigrado. Basta ler-lhe a determinação do olhar para antecipar a óbvia resposta.
«Quando eu vim para cá, Portugal era uma miséria, morríamos de fome. Aqui fui bem recebido, a vida foi por vezes difícil, mas tudo se passou, o trabalho nunca me meteu medo. Hoje tenho quase oitenta anos, a saúde não me falta, criei os filhos que, graças a Deus, têm bons empregos, os netos gostam de mim. Quando as saudades apertam, meto-me num avião e vou até à terra. O que mais posso pedir?»
Há dias em que lhe dá prazer rememorar os primeiros tempos da chegada, quando tudo era desconhecido, nas raias do irreal.
«Não tinha cá ninguém e não percebia patavina das línguas do país. Tenho muito a agradecer a alguns portugueses que já viviam no Bairro Português, se não me tivessem amparado, não sei o que teria sido de mim. Quer saber qual foi o meu primeiro emprego? Nem lhe passa pela cabeça.»
Solta uma gargalhada, inesperada em homem tão circunspecto, que até sobressaltou os patos no lago.< br> «Fui apanhador de minhocas, veja lá! Íamos ao anoitecer, em grupo, para os campos de golfe, com uma lanterna na testa e uma lata atada à perna, e era um apanhar nelas que só visto. Quando conto isto em Portugal, nem acreditam, pensam que é cantiga minha.» Divertido, passa a manápula pelo rosto, acama os cabelos grisalhos mas ainda bastos. «Depois já foi melhor, os meus amigos arranjaram-me trabalho numa padaria de italianos, a amassar pão, tudo o que vinha à rede era peixe.»< br> Ontem, apareceu acompanhado pela mulher. Franzina, azougada, tagarela, um pouco mais nova do que ele, veio, rapidamente, espalhar umas pinceladas mais vivas nas nossas conversas tantas vezes insípidas.
«Este malandro, mal acaba de jantar, sai logo porta fora. Desconfio que anda para aí a arrastar a asa a alguma rapariga.» Dá uma palmada amigável no joelho do marido que sorri, meio encavacado. De pescoço esticado, varre o parque com os olhos inquietos para logo se voltar para mim, pronta para desatar o saco num chorrilho de palavras que se atropelam umas às outras, apressadas por voar em bando.
«O meu marido já lhe deve ter contado a vida dele mas olhe que a minha também não foi fácil, principalmente no princípio. Trabalhava numa fábrica de casacos, a ganhar à peça. Aquilo era todo o santo dia agarrada à máquina, quantos mais forros pregasse mais ganhava, era trabalho de escrava. Costuma-se diz que Deus escreve direito por linhas tortas, é bem verdade. Quando a fábrica fechou fiquei toda aflita mas, passado pouco tempo, encontrei trabalho, nas limpezas em casa de uma senhora judia, foi como se me tivesse saído a sorte grande. Ela gostou tanto de mim que, passados poucos meses, já era eu que tratava de tudo, fiquei a ser a governanta da casa e já tinha outra portuguesa para me ajudar nos trabalhos mais pesados.»
Calou-se, com as mãos cruzadas sobre o peito, para ganhar fôlego. Oportunidade que o marido aproveitou para se desculpar, com um olhar penalisado:
«O senhor deu-lhe trela, agora tem de a ouvir. Esta mulher quando começa a falar não há quem a cale.»
«Lá vai por ti, passas dias seguidos quase sem me dar uma palavra, às vezes parece que lhe meteram uma rolha na boca. O senhor quer ouvir mais esta...»
Na calmaria da tarde, ela continuou o seu tagarelar sem fim, eu fiquei a seguir o voo das andorinhas, o marido de ouvido à escuta do canto dos melros que até pareciam que se esmeravam só para lhe dar prazer.
Sei que aquelas criaturas, ali sentadas ao meu lado, naquele pacato anonimato, nunca estarão debaixo das luzes na ribalta, nunca verão o seu nome escarrapachado nos jornais, morrerão como viveram, fundidos na natureza, com a naturalidade das árvores que cumpriram o seu ciclo, entre muitas, na floresta.
Contudo, quando por vezes me imagino talentoso escultor capaz de talhar uma estátua de homenagem aos emigrantes desconhecidos, é aquele rosto lavrado a formão e aquelas mãos rudes do homem e, frente a frente com ele, o rosto afilado, fremente, vivo, atravessado por coragem inabalável, da mulher, companheira das boas e das más horas, que gostaria de ter engenho para perpetuar no calor da pedra ou da madeira.
(Texto final do livro “Rostos, Olhares e Memória”, publicado em Montreal-2012)

domingo, agosto 29, 2010


Mudam-se os tempos

- Pai, eu fico. Gosto muito de vocês mas fico. Não estou para me ir enterrar naquela pasmaceira. Aquilo, embora tenha nascido lá, já não me diz nada.
Estavam a almoçar. O Manuel Casaca, a mulher, a filha. Num domingo de Maio.
O Manuel Casaca fitou os olhos garços e límpidos da filha. Uma limpidez entretecida de determinação e resoluções feitas. Baixou os olhos para o prato, as batatas engroladas na garganta.
- Tu é que sabes, filha, tu é que sabes da tua vida. Eu e a tua mãe só queremos o teu bem. - A violência das palavras gastara-se em meses de discussões virulentas. -Tu e que sabes, filha.
` - Eu e o Maurice vamos casar. Tentem compreender, por favor. Por favor. -
Minutos de silêncio. O sol a entrar pela janela.
- Vou dar uma volta.
- Onde vais, Manel? — alarmou-se a mulher, chorosa.
- Descansa que não me vou enforcar.
Na rua, sentia-se desnorteado, desprogra¬mado. Os quinze anos de Canadá repartira-os entre o trabalho e a St-Dominique. Entremeados de viagens a Portugal de cinco em cinco anos, para matar saudades, para preparar o amanhã.
Foi dar ao jardim. Um jardim a cobrir-se vertiginosamente de sol e verde. Sentou-se num banco. Um esquilo desceu duma árvore e aproximou-se em avanços e arrecuos inquietos. As perguntas-acusações sem resposta da aldeia em peso não cessavam de esmurrar o homem:
“E a tua filha? O quê? Deixaste-a naquelas terras? Casada com um estrangeiro? E tu deixaste? Que raio de homem és tu? Não te sais ao teu pai, não, com esse ela vinha nem que fosse morta. Andaste tantos anos por lá para quê? Todas as terras que compraste vão ser para os lobos. Mais valia teres ficado por lá, desgraçado.”
- Podem-me dizer o que devo fazer? Hei-de morrer nestas terras, enterrado num buraco de gelo?
O esquilo marinhou árvore acima, amedrontado corn os gritos do homem. Lá no alto, ficou imóbil, a espiar.
O Luis Rita, que por essa altura passava rente ao jardim, abanou a cabeça. No cruzamento da Laval com a Pine, tropeçou num grupo de conterrâneos agachados ao redor duma telefonia.
- Sabem que está ali no jardim, a falar sozinho? O Manuel Transmontano. Sempre disse que aquele gajo acabava zaruca.
- Cala-te, cabrão. Deixa-nos ouvir o relato.
*
Recém-chegado a Montreal, foi com este texto que me estreei como colaborador do jornal A Voz de Portugal. Já lá vão trinta anos. Três décadas que assistiram à maior revolução tecnológica da história da humanidade.
Esta manhã, ao encontrar casualmente o retalho de jornal numa pasta amarelecida pelos anos e ao relê-lo, com um sorriso algo saudosista nos lábios, apercebi-me como o mundo mudara. Como a comunidade portuguesa mudara.
Agora, o sonho dos encanecidos pioneiros da emigração portuguesa para estas terras já não é levar a família de volta ao torrão natal. Perdidas as ilusões, deixaram de ser exigentes e já se alegram, e até mesmo soltam uma lágrima enternecida rugas abaixo, se os netos ainda continuam a falar sem grandes atropelos a língua portuguesa e a gostar de bifanas, caldo verde e folclore. As rasteiras vida ensinou-os a contentarem-se com pouco e a aceitar o porvir com resignação.
O fervor pelo futebol talvez ainda esteja mais aceso do que antigamente. Com a abismal diferença de que agora, na maré cheia da revolução das comunicações, as telefonias de ondas curtas já são autênticas peças de museu e os jogos podem ser seguidos religiosamente nos enormes e luminosos ecrãs de televisão que transmitem as imagens e o som com uma fidelidade sem mácula. Até mesmo nas manifestações de júbilo por ocasião dos ansiados golos ou perante uma jogada mais virtuosa, no salutar confronto clubista da algazarra dos cafés, o portuguesíssimo e abrangente cabrão é cada vez mais amiúde ultrapassado por um “pure laine” e sonoro tabarnac, a revelar uma evidente mestiçagem de línguas e culturas que nada nem ninguém conseguirá deter.
Rendo-me à evidência. Da minha envelhecida história pouco resta de pé. Só mesmo os esquilos é que ainda continuam a marinhar árvores acima donde ficam, pasmados, a observar a incompreensível correria dos homens pelos caminhos dum futuro cada vez mais improvável mas sempre fascinante.

segunda-feira, dezembro 28, 2009

Noite de consoada


A St-Laurent estava quase deserta. Não fossem os enfezados enfeites luminosos, a pingar das árvores despidas e famélicas, que pintalgavam os restos de neve arremeçados contra os bordos dos passeios, nem se acreditaria que era a noite de consoada.
O homem, ainda novo, quarenta anos mal feitos, caminhava com passada mole, sem destino, num remar cansado contra a noite infindável. Vergavam-no o peso das recordações que lhe tinham cravado a dentuça no pescoço e teimavam, raivosas, em não lhe dar tréguas.
As mais antigas, nebulosas mas ainda assim felizes, eram fragmentos cada vez mais esboroados das consoadas da infância em Miranda: a crepitante fogueira acesa pelo entusiasmo da rapaziada, carradas e carradas de lenha queimadas num imenso braseiro que alimentavam noite fora as labaredas esfomeadas de chegar ao céu; a missa do galo, na Sé enregelada, com a ladainha do padre a ressoar pelas imensas naves , tão interminável que até impacientava o seráfico Menino Jesus da Cartolinha como sempre regaladamente instalado na sua guarida; o silente regresso a casa, a paz pousada como pombas brancas nos beirais dos telhados, os passos a ressoar nas pedras lisas e escorregadias da calçada medieval.
Nos primeiros anos em Montreal, lar de imigrantes aturdidos em busca de sentido para a nova vida, eram noites tristes, cheias de saudades mal saradas, de lágrimas furtivas da mãe sufocadas pelos cantos da casa, disfarçadas por sorrisos apagados.
Já homem feito, numa fuga constante às fragilidades coladas para sempre à pele, as noites de consoadas eram passadas, nas mais diversas e inesperadas circunstâncias, ao sabor das suas relações amorosas frívolas, inebriantes, sem cadeias. Quando as coisas corriam para o torto, havia sempre os braços abertos da casa dos pais, as eternas bolas mirandesas, o calor duma alegria mais resignada e o vozeirão sadio do pai repleto de recordações. Era a elas que se agarravam todos com a fúria de náufragos num mar estranho a que nunca pertenceram por inteiro.
Estava, agora mesmo, a ouvir a voz do pai: que rapaz este, recordas-te mulher?, não havia presente de Natal que lhe servisse. Só tinha olhos para os canivetes mirandeses, até lhe saltavam os olhos da cara quando via um nas mãos de alguém. Ainda mal se sustinha nas pernas, parecia um cachorrito a saltar atrás de quem lhe mostrasse o dianho dum canivete. - As palavras rudes ensopavam-se de lágrimas ternurentas. - Nunca vi uma coisa assim, o garoto parecia enbruxado.Como é que se podia dar um brinquedo desses a uma criança! Só se fôssemos doidos..
A mãe, sombra diáfana, sorria, passava-lhe a mão protectora pelos cabelos e, sem que eles se apercebessem, ia-se despedindo aos poucos do filho, do marido, soltas, desde há muito, as amarras ao cais da vida.
O falecimento dos pais quebrara a derradeira ligação umbilical aos prados floridos da infância. O fascínio dos canivetes fora para sempre, assim o acreditara, vencido pelo do mistério das mulheres. Mas com o correr da vida, principalmente nesta época do ano, face a face com as recordações assanhadas, cada vez se apercebia com mais crueza da fraqueza das raízes que o agarravam ao chão que pisava, da sua solidão. Uma solidão imensa, dolorosa, que lhe perfurava as entranhas e abria sulcos profundos de tristeza que nada, nem mesmo as mais envolventes aventuras amorosas, podia sarar.

Quando chegou ao Parc du Portugal, as pernas trémulas recusaram continuar a caminhada sem norte, forçaram-no a sentar-se num banco mesmo à beira do fontanário donde o leão de pedra da bica, seca nesta época do ano, o observava meio intrigado. Mais à frente, o padrão dos descobrimentos, esguio e esbranquiçado, na sua frieza pétrea, era sentinela vigilante, indiferente à sua presença. No telhado do coreto, os pombos encolhiam-se uns contra os outros para se protegerem do frio cortante e também não lhe prestavam atenção. Só o manto de neve que cobria a calçada do parque é que rastejava ao seu encontro para o envolver no seu abraço frígido.
Enregelado, estava disposto a erguer-se, prosseguir o calvário da caminhada, quando, assombrado, pressentiu um vulto sentado a seu lado. Sem pinga de sangue, olhos dilatados de espanto, reconheceu logo a figura inconfundível do Menino Jesus da Cartolinha: rosado, a cartola na cabeça, todo aperaltado na sua farpela de cetim bordado a oiro dos dias de festa, um sorriso fraterno desenhado nos lábios infantis.
A um gesto do Menino, o parque animou-se rapidamente. Um grupo de anjos desceu do céu, instalou-se no coreto com um farto instrumental de harpas, cítaras e flautas que encheram a noite com a magia da sua música celestial. Logo de seguida, dois outros anjos, surgidos do frio, desdobraram alva toalha de linho sobre a neve e serviram em silêncio, uma frugal ceia de consoada composta de pão de centeio, salpicão e presunto.
O Menino, sorridente, retirou da algibeira da casaca um belo canivete de cabo de madeira esculpido que ofereceu ao homem.
- Reconheces? É o canivete dos sonhos da tua infância. Podemos começar a cear.
O homem lentamente, num ritual litúrgico, a saborear cada instante, cortou o pão em longas e suculentas fatias, o salpicão em rodelas finas e sumarentas, o presunto em lascas rosadas, com firmeza e uma sabedoria que só podia nascer do fundo da memória ancestral.
Faltava o vinho mas logo da boca do leão do fontanário começou a jorrar um bica-aberta fresco e capitoso que recolhiam na concha das mãos e sorviam deliciados.
Finda a ceia, os anjos recolheram os restos das vitualhas e os instrumentos musicais e evolaram-se, sem ruído, nas profundezas da noite. O Menino Jesus da Cartolinha, um tudo nada mais corado pelos efeitos do vinho, demorou um último olhar nos olhos do homem e preparou-se para partir também.
- O canivete - balbuciou o homem.
A suave mão do Menino aflorou-lhe o ombro.
- É teu. É o teu presente de Natal.
Quando, instantes depois, com passo firme e decidido, o homem regressou ao seu apartamento, com o canivete no fundo da algibeira, era a criança mais feliz do mundo.