domingo, agosto 29, 2010


Mudam-se os tempos

- Pai, eu fico. Gosto muito de vocês mas fico. Não estou para me ir enterrar naquela pasmaceira. Aquilo, embora tenha nascido lá, já não me diz nada.
Estavam a almoçar. O Manuel Casaca, a mulher, a filha. Num domingo de Maio.
O Manuel Casaca fitou os olhos garços e límpidos da filha. Uma limpidez entretecida de determinação e resoluções feitas. Baixou os olhos para o prato, as batatas engroladas na garganta.
- Tu é que sabes, filha, tu é que sabes da tua vida. Eu e a tua mãe só queremos o teu bem. - A violência das palavras gastara-se em meses de discussões virulentas. -Tu e que sabes, filha.
` - Eu e o Maurice vamos casar. Tentem compreender, por favor. Por favor. -
Minutos de silêncio. O sol a entrar pela janela.
- Vou dar uma volta.
- Onde vais, Manel? — alarmou-se a mulher, chorosa.
- Descansa que não me vou enforcar.
Na rua, sentia-se desnorteado, desprogra¬mado. Os quinze anos de Canadá repartira-os entre o trabalho e a St-Dominique. Entremeados de viagens a Portugal de cinco em cinco anos, para matar saudades, para preparar o amanhã.
Foi dar ao jardim. Um jardim a cobrir-se vertiginosamente de sol e verde. Sentou-se num banco. Um esquilo desceu duma árvore e aproximou-se em avanços e arrecuos inquietos. As perguntas-acusações sem resposta da aldeia em peso não cessavam de esmurrar o homem:
“E a tua filha? O quê? Deixaste-a naquelas terras? Casada com um estrangeiro? E tu deixaste? Que raio de homem és tu? Não te sais ao teu pai, não, com esse ela vinha nem que fosse morta. Andaste tantos anos por lá para quê? Todas as terras que compraste vão ser para os lobos. Mais valia teres ficado por lá, desgraçado.”
- Podem-me dizer o que devo fazer? Hei-de morrer nestas terras, enterrado num buraco de gelo?
O esquilo marinhou árvore acima, amedrontado corn os gritos do homem. Lá no alto, ficou imóbil, a espiar.
O Luis Rita, que por essa altura passava rente ao jardim, abanou a cabeça. No cruzamento da Laval com a Pine, tropeçou num grupo de conterrâneos agachados ao redor duma telefonia.
- Sabem que está ali no jardim, a falar sozinho? O Manuel Transmontano. Sempre disse que aquele gajo acabava zaruca.
- Cala-te, cabrão. Deixa-nos ouvir o relato.
*
Recém-chegado a Montreal, foi com este texto que me estreei como colaborador do jornal A Voz de Portugal. Já lá vão trinta anos. Três décadas que assistiram à maior revolução tecnológica da história da humanidade.
Esta manhã, ao encontrar casualmente o retalho de jornal numa pasta amarelecida pelos anos e ao relê-lo, com um sorriso algo saudosista nos lábios, apercebi-me como o mundo mudara. Como a comunidade portuguesa mudara.
Agora, o sonho dos encanecidos pioneiros da emigração portuguesa para estas terras já não é levar a família de volta ao torrão natal. Perdidas as ilusões, deixaram de ser exigentes e já se alegram, e até mesmo soltam uma lágrima enternecida rugas abaixo, se os netos ainda continuam a falar sem grandes atropelos a língua portuguesa e a gostar de bifanas, caldo verde e folclore. As rasteiras vida ensinou-os a contentarem-se com pouco e a aceitar o porvir com resignação.
O fervor pelo futebol talvez ainda esteja mais aceso do que antigamente. Com a abismal diferença de que agora, na maré cheia da revolução das comunicações, as telefonias de ondas curtas já são autênticas peças de museu e os jogos podem ser seguidos religiosamente nos enormes e luminosos ecrãs de televisão que transmitem as imagens e o som com uma fidelidade sem mácula. Até mesmo nas manifestações de júbilo por ocasião dos ansiados golos ou perante uma jogada mais virtuosa, no salutar confronto clubista da algazarra dos cafés, o portuguesíssimo e abrangente cabrão é cada vez mais amiúde ultrapassado por um “pure laine” e sonoro tabarnac, a revelar uma evidente mestiçagem de línguas e culturas que nada nem ninguém conseguirá deter.
Rendo-me à evidência. Da minha envelhecida história pouco resta de pé. Só mesmo os esquilos é que ainda continuam a marinhar árvores acima donde ficam, pasmados, a observar a incompreensível correria dos homens pelos caminhos dum futuro cada vez mais improvável mas sempre fascinante.

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