segunda-feira, dezembro 31, 2012

HOMENS DESTES NUNCA MORREM

Disseram-me que o José das Neves Rodrigues faleceu.
Não acredito. Homens destes nunca morrem. Andem lá por onde andarem, ficarão para sempre vivos na memória e no imaginário colectivo dos povos que tiveram a benção de os acolher no seu regaço.
Porque o Neves Rodrigues pertencia àquela estirpe de homens visionários que têm o condão de espargir braçados de sonhos ao seu redor, como quem semeia amanhãs radiosos. Sonhos do tamanho do mundo, raiados com as cores mais surpreendentes que a vida pode procriar.
Tipógrafo de profissão, anarquista convicto, chegou ao Canadá em 1960 e nas décadas de sessenta e setenta, em tudo o que de relevante acontecesse na Comunidade, inevitavelmente, logo vinha à baila o nome dele. Na fundação da Caixa Portuguesa, da Casa dos Portugueses de Montreal, do Movimento Democrático, do Centro de Referência; na criação e publicação de boletins, jornais e revistas como o Luso-Canadiano, a Tribuna Portuguesa, o Movimento, o Portinhola e a Caravela; nas gloriosas jornadas de luta antifascista; em projectos concretizados ou que, mirabolantes, nunca foram avante, como a criação de livrarias, de arquivos documentais, de bibliotecas ou de centros culturais. Sempre de mãos estendidas e abertas, mente fervilhante, alma desmedida e uma sede insaciável de fraternidade e de justiça social.
Foi, decerto, a pensar em sonhadores destes que o poeta António Gedeão burilou essa filigrana incomparável que é a Pedra Filosofal.
(...)
Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida,
Que quando um homem sonha
O mundo pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança
(...)
Infatigável cavaleiro andante da utopia, quantas vezes incompreendido e ostracizado, quando não escarnecido, nunca deixou de semear, prodigamente, sonhos e quimeras pelos campos floridos do porvir, por vezes em batalhas inglórias contra moinhos de vento, quase sempre com sacrifício dos seus interesses pessoais e familiares.
Conheci-o, casualmente, numa viagem de avião para Lisboa. Foi uma fabulosa noite em branco, num fascinante cavaquear sem tréguas que deveria ter deixado os nervos em franja aos passageiros mais próximos, ansiosos por um pouco de repouso antes de poisarem no torrão natal.
Já sobrevoávamos Lisboa que, esplendorosa, desabrochava na manhã luminosa, quando, a meio da cavalgada da conversa, quando eu menos esperava, sussurou-me ao ouvido:
“Vou-lhe contar um segredo, mas não me denuncie. Levo aqui comigo as cinzas da minha mulher, para sepultar em Portugal.” - Apesar da estonteante revelação, sorria, quase divertido - “Foi a última vontade dela. Não sei se é legal mas também nunca liguei muito a leis.”
Nunca mais pude esquecer a expressão faiscante daqueles olhos claros como a água. Só muito mais tarde, em circunstâncias de que agora não me recordo, é que eu soube quem ele era. E só então é que compreendi que, possivelmente, aquela teria sido uma das últimas acções conspirativas do indomável anarquista.
Como uma obsessão, que nunca deixou de me perseguir, sempre tive o anseio de contar a história daquela noite extraordinária que o acaso nos proporcionou passarmos juntos. A oportunidade parecia, finalmente, querer concretizar-se com a realização de uma entrevista para o livro “Rostos, Olhares e Memória” mas, infelizmente, fui dissuadido do meu intento por informação de que já se encontrava muito debilitado e incapaz de suportar tamanho esforço.
Mas que viagem de assombros aquela! Passados tantos anos, ainda me parece que o estou a ouvir, as palavras a soltarem-se, frementes e triunfais, com o fervor dos crentes:
“Acredito que um dia virá em os homens serão todos iguais e que a Terra, sem amos nem escravos, será, finalmente, um paraíso onde a felicidade reinará para sempre.”
Que mais adequadas e mais belas palavras poderia encontrar para dar esperançosas boas vindas ao ano de 2013? E ainda há quem diga que o Neves Rodrigues morreu! Pura ilusão, as UTOPIAS são imortais.

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