segunda-feira, setembro 04, 2006


"Recentemente, foi inaugurada uma praça em Montreal em homenagem a Marie-Josèphe Angélique(Entre a av. de l'Hôtel-de-Ville e a estação de métro Champ-de-Mars)"
UMA BELA HISTÓRIA POR CONTAR

Quantas histórias ficam por contar? Quantas vidas magníficas ficarão para sempre irremediavelmente ignoradas, cobertas pelo manto espesso do tempo que corre à desfilada?
E algumas delas, modeladas pela mão de escritor inspirado seriam diamantes a refulgir na galeria das obras imortais.
É essa a grande dor dos ficcionistas. Uma dor que rói até às entranhas, nascida da percepção inconformada de que o mundo invisível é muito mais vasto do que aquele que se nos apresenta ao olhar tantas vezes descuidado.
Como eu gostaria de ter “engenho e arte” para contar a história de uma menina negra nascida na ilha da Madeira e que morreu em Montreal naquele terrível dia 21 Junho de 1734, coberta de opróbrio, às mãos de impiedoso carrasco.
Como se chamaria essa menina? Maria? Provavelmente. Como provavelmente seria filha de escravos negros dos engenhos da cana do açucar da ilha da Madeira. Como viveu naquela ilha maravilhosa? Que sonhos lhe povoavam a mente de criança? Foi uma criança feliz? De que forma recambolesca veio parar à Nova França? Acorrentada no porão dalgum barco negreiro? De forma mais civilizada, na companhia do seu novo amo, o comerciante François Poulin? Que pulsões lhe lavraram o corpo de ébano quando os seus olhos deslumbrados (assustados?) viram as primeiras neves a tombar, tocadas pelo frio e pela solidão? Que desvario a invadiu quando, em língua estranha e hostil lhe trocaram o nome, lhe cravaram, a ferro e fogo, na alma o ferrete da sua nova condição de escrava irremediavelmente perdida nas terras polares?
Tantas interrogações, tantas zonas de penumbra que só a imaginação fértil do criador poderá retocar de luz e trazer à tona do compreensível. Tanto material, palpitante de vida, à espera de saltar para as páginas de romance fremente por ser escrito, com a ansiedade com que o trigo ondulante espera que o transformem em pão.
Que era bela, cheia de vida, atrevida, impetuosa, é claro como a água. Adivinho-lhe o corpo escultural em requebros lascivos. Pressinto-lhe os olhos profundos a lampejar poalhas douradas. Ouço-lhe as risadas em cascata a sugerir promessas mal cumpridas. Respiro-lhe os silêncios misteriosos de selva africana. Sinto-lhe o sangue em alvoroço, seiva farta e generosa a jorrar na aridez das vidas árduas e acabrunhadas. Só assim se compreende que tivesse ateado tantas paixões e destroçado tantos corações desde o escravo César ao branco Claude Thibault que se perdeu por sua causa. Só assim se compreende que tivesse morrido de forma tão trágica. Porque as sociedades atoladas num quotidiano sem histórias não perdoam àqueles que vêm, com a sua rebeldia, agitar as águas miasmáticas e estagnadas.
Em 1730, foi (re)baptizada, na cidade de Montreal, com o nome de Marie-Josèphe Angélique. Nesse dia, a criança que talvez se chamasse Maria, refugiou-se no mundo inacessível do sonho quase cósmico onde manteve acessa, pressinto-o, a chama dum regresso libertador à sua ilha, montada no seu corcel de fogo e luz.
A vida da escrava Marie-Josèphe Angélique, que supostamente na noite fatídica de 10 de Abril de 1734 incendiou meia Montreal, está imortalizada e analisada de forma mais ou menos romanesca numa profusão de obras literárias e documentários nascidos ao longo dos anos. Já faz, inegavelmente, parte integrante do imaginário colectivo e da História do Quebeque.
Principalmente agora que a governadora Geral do Canadá, Michaëlle Jean, num gesto arrojado e corajoso a lançou para as luzes da ribalta ao prestar-lhe uma sentida e significativa homenagem pública e que o Centre d'histoire de Montréal resolveu montar uma exposição que decorrerá de 12 outubro de 2006 até 25 Março de 2007 para além de lhe dedicar uma bem documentada e articulada página web integrada na série Grands Mystères de l’histoire canadienne.
Sim, a história de Marie-Josèphe Angélique está contada e a sua memória finalmente reabilitada. Uma reabilitação tardia mas que é, mesmo assim, um facho de esperança que ilumina o caminho de todos aqueles que aspiram a um mundo humanizado em plena harmonia com a natureza.
Mas está por contar a história mais bela de todas. A mais pura, única como o mais precioso metal que resta no cadinho, criado pelas mãos mágicas de alquimista febril. A história da pequena Maria(?). Desde o dia do seu nascimento até ao trágico dia em que foi (re)baptizada com esses áspero nome de Marie-Josèphe Angélique. A história da criança que se fez mulher por entre destroços e ruinas dum mundo convulso.
As suas cinzas ficaram em Montreal, espalhadas aos quatro ventos pela maldade dos homens mas o seu espírito, luminoso e puro, esse, partiu, acredito, em voo silente, para a sua bela ilha da Madeira. É até muito possível que ainda por lá ande, na forma de esbelta pomba branca, a ruflar sobre as cabeças dos amorosos.

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