segunda-feira, setembro 04, 2006


Andorinhas na alma


Em recente estrevista ao Portal da Literatura, dizia Cristina Norton, uma escritora nascida na Argentina mas a viver em Portugal há mais de 30 anos, que, passo a citar, a credito que quem não sabe encontrar a felicidade nas pequenas coisas tampouco a vai encontrar nas grandes.
Nesta certeza, apetece-me continuar a escrever (falar) sobre esses nadas tão grandes que influenciam decisivamente e, estou em crer, que comandam as nossas sinuosas existências.
Aqui estou mais uma vez no parque Jarry, que frequento agora geralmente depois do jantar. Cumprida mais uma longa e retemperadora caminhada, sento-me num dos bancos que bordejam o pequeno lago.
Anoitece serenamente. Respira-se paz, como se o bulício da cidade que ruge tão perto não pudesse chegar aqui, impedido por mãos protectoras. A brisa murmura na folhagem das árvores. Pássaros chilreiam por entre os juncos. Há esquilos a cabriolar sobre os relvados. Há patos a singrar no espelho de água. Há crianças. Muitas crianças. Há mulheres orientais envoltas nos seus véus de seda colorida. Num banco ao lado, um bando de velhos italianos, encanecidos e sulcados pela rispidez da vida, palram como gralhas. Adivinho-lhes os farrapos de recordações, tantas, tantas, a modular as palavras assanhadas.
Ergo os olhos num ritual catártico, em busca também de tempos longínquos e, lá no alto, sobre o lago, na vertigem do seu voo nervoso, as andorinhas riscam a abóbada celeste em arabescos indecifráveis e intermináveis.
Nestes tempos conturbados em que mais uma vez os homens se matam uns aos outros em nome dos seus pequenos deuses, envolve-me o misticismo apazigante e reconciliante da oração “Aos simples” do poeta Guerra Junqueiro:

Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,
E a Lua branca, além, por entre as oliveiras,
Como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!...
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,
Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,
Eu balbuciava a minha infantil oração,
Pedindo ao Deus que está no azul do firmamento
Que mandasse um alívio a cada sofrimento,
Que mandasse uma estrela a cada escuridão.

Acendem-se, feéricos, os candeiros que iluminam o lago. Sombras mais densas começam a alastrar pelos tapetes sem fim de relva. Regressam ao lares os italianos já trôpegos. As andorinhas continuam, lá no alto, a desenhar sonhos na minha alma de criança.

lusocanadiano-Montreal

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