sábado, setembro 02, 2006


Quentes e boas

Tempos houve em que Portugal respirava ao ritmo duma miríade de pregões que já fazem parte integrante do nosso imaginário colectivo. E feliz é o povo que conseguiu amealhar tamanha riqueza e incorporá-la na sua identidade milenar.
Quem não recorda hoje com saudade e ternura os pregões das peixeiras, dos ardinas, dos cauteleiros e das mais variadas figuras típicas que, na azáfamada do ganha-pão diário, enchiam as ruas de Lisboa e das nossas cidades de sons, cor, luz e vida?
Mas há pregões que resistem à voragem do tempo e do progresso. Quem quer quentes e boas, quentinhas?, ainda hoje apregoam os vendedores ambulantes de castanhas assadas quando ciclicamente chegam as brumas do outono.
Evocação que nos faz rebentar com saudades do cheiro a castanhas a saltar nos assadores de barro, dos novelos espessos de fumo acre que acinzentam ainda mais as tardes friorentas e envolvem num manto brumoso as calçadas tortuosas e polidas. Eterna inspiração para tantos poetas e pintores, esses caçadores de nadas tão grandes.
Há dias, um poeta, - sim, só um poeta pode aventurar-se a tal loucura - instalou uma carripana toda engalanada na Philippe Square, em pleno centre-ville de Montreal, onde vende castanhas assadas com a bravura dum semeador de sonhos. De tempos a tempos, para delícia dos transeuntes, toca uma sineta que ressoa estridentemente pelas esquinas da praça a arrebanhar os crentes para um qualquer ritual catártico. Não sei qual é o seu país de origem nem me interessa sabê-lo, mas pela profundeza do olhar limpo adivinha-se que é homem que viu muitos lugares e muitas almas. E que sabe alguma coisa acerca das fomes que consomem as criaturas transviadas pelas veredas do mundo e da vida.
Por três dólares, comprei um cartucho de castanhas que recolhi na concha das mãos com a emoção de quem segura um recém-nascido. Minto, só agora reconheço que aquilo não era um cartucho de castanhas mas sim um rutilante poema que se escondia aos olhos menos atentos. Três dólares por um poema tão belo. Mas que pechincha!
Pelo sorriso enigmático que lhe arqueou os lábios e lhe acendeu fogueiras nos olhos, desconfio que o vendedor-poeta adivinhava a razão da minha emoção e que me lia descaradamente na alma como num livro aberto.
A avaliar pela fraca afluência de compradores, pode o negócio ser fraco e de pouco futuro, mas enquanto durar, estou certo que o malandro se deve divertir à farta, lá isso deve.

lusocanadiano, montreal

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