segunda-feira, novembro 06, 2006

A lenda do barco em chamas


Numa crónica anterior interrogava-me eu quantas histórias não ficarão por contar. Quantas vidas magníficas ficarão para sempre irremediavelmente ignoradas, cobertas pelo manto espesso do tempo que corre à desfilada. Quanto material, palpitante de vida, estará à espera de saltar para as páginas de romance fremente por ser escrito, com a ansiedade com que o trigo ondulante espera que o transformem em pão.
A saga dos irmãos Corte-Real e das suas viagens ao Novo_Mundo, envoltas em mistério e quantas vezes em fantasia, é mais uma dessas histórias fascinantes. Ao ponto de ter inspirado ao Fernando Pessoa o seu belo poema Só:

A nau de um deles tinha-se perdido
No mar indefinido.
O segundo pediu licença ao Rei
De, na fé e na lei
Da descoberta, ir em procura
Do irmão no mar sem fim e a névoa escura.
Tempo foi.

Nem primeiro nem segundo
Volveu do fim profundo
Do mar ignoto à pátria por quem dera
O enigma que fizera.
Então, o terceiro e El-Rei rogou
Licença de os buscar, e El-Rei negou.
(...)

Que belo romance histórico daria! Os ingredientes estão todos lá. Qualquer dia irei escrever à minha amiga Deana Barroqueira, escritora nascida nos Estados Unidos mas a residir em Portugal e sugerir-lhe este tema. Autora consagrada de romances históricos de aventuras, com certeza irá considerar seriamente a minha sugestão. Então quando lhe revelar a lenda fascinante do “Barco em Chamas” da Île au Héron, sei, adivinho que não poderá resistir ao desejo de deitar mãos à obra.
Esta lenda, pouco lisonjeira para os rudes navegadores portugueses da época, encontrei-a numa página da internet do Centre d'études acadiennes da Université de Moncton e em tradução livre e resumida conta-se assim:
Em 1500, Gaspar Corte-Real, navegador português, chegou a estas paragens e, sob o pretexto de dar uma festa em sua honra, convidou os principais chefes indígenas a subir a bordo da sua caravela. Embriegou intencionalmente os incautos desgraçados que quando acordaram, sobressaltados, já estavam em pleno mar, a caminho de Portugal onde foram vendidos como escravos. Deslumbrado com o sucesso da sua viagem, Gaspar empreendeu nova viagem em 1501 tendo chegado desta vez à Île au Héron, situada na Baie des Chaleurs, no Golf St-Laurent, onde lançou âncora.
Alertados por mais esta incursão, um numeroso grupo de índios, sedentos de vingança, reuniu-se no local e numa noite muito escura atacou a caravela e massacrou toda a equipagem. Somente Corte-Real foi poupado: a sua morte deveria ser mais lenta e dolorosa. Amarrado, foi colocado sobre um rochedo do Héron, à beira-mar. Depois de durante mais de três horas o terem martirizado atrozmente, abandonaram-no à mercê da maré que subia lentamente e que acabou por engolir o infeliz navegador.
No verão de 1502, Miguel Corte-Real , irmão de Gaspar, inquieto pela falta de novas, partiu por sua vez de Lisboa e após longa viagem alcançou a Baie des Chaleurs onde encontrou a caravela abandonada do irmão encalhada em terra.
O barco parecia intacto, não se avistava vivalma. Mas mal se aproximaram, de surpresa, várias canoas rodearam a caravela e, ágeis como macacos, os índios subiram rapidamente a bordo e massacraram parte da tripulação. O capitão e os restantes sobreviventes ao assalto inesperado, foram-se refugiar na proa da embarcação que, sem governo, partiu à deriva, com todos os combatentes a bordo. Subitamente, deflagrou um grande incêndio que alastrou rapidamente pelo barco que, com as velas em chamas, singrava velozmente sobre as águas. Só um dos índios sobreviveu à catástrofe para contar o que aconteceu. Do destino de Miguel Corte-Real e dos seus companheiros não narra a lenda deixando em aberto todas as suposições, entre as quais se inclue o mistério das inscrições talhadas no já célebre Dighton Rock, encontrado séculos mais tarde.
A partir desse fatídico dia, geralmente no mistério da noite, frequentemente em vésperas de tempestade, surgia na baía um barco em chamas que fantasmagoricamente singrava sobre as águas apavorando a população da Île au Héron.

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